O tempo da misericórdia e a salvação da cultura

Uma renovada pastoral da Igreja para o anúncio da misericórdia, em torno do método hermenêutico-pedagógico “tempo-culto-cultura”, permite um olhar em profundidade para o Terceiro Milênio, sobretudo a partir desta palavra de Cristo antes de sua Ascensão e do Pentecostes: “Não compete a vós conhecer os tempos [chronoi] e os momentos [kairoi] que o Pai fixou… mas recebereis uma força [dynamis], a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas… até os confins do mundo” (At 1,7-8). Também no eixo pascal da Ascensão-Pentecostes, a Evangelii gaudium encontrou a “centralidade do querigma” (EG 165), desenvolvendo os números 19, 160 e 259 referentes ao mandato missionário do Senhor de batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19-20) e à efusão do Espírito sob o simbolismo do “fogo” (cf. At 2,3- 4): “O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo, que, com sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai” (EG 164). 

Esta fórmula do Papa Francisco se insere na ideia de que “os tempos e os momentos” constituem o plano trinitário da salvação: a realização na história – e, portanto, na cultura – do Desígnio eterno de amor e infinita misericórdia, isto é, a economia do mistério de Cristo ou, no “tempo” da Igreja, a economia sacramental, para que a existência cristã, de acordo com o querigma, manifeste a unidade do mistério da misericórdia, como mis- tério acreditado, celebrado e vivido (cf. Catecismo da Igreja Católica, CIC 1066-1068 e 2558). É a via pulchritudinis (EG 167) – a “admiração” diante do mistério da economia como caminho de salvação –, indicada por Francisco em homilia no recente Consistório (30/08/2022), à qual remeto o leitor. Trata-se sempre da dynamis do Espírito, na qual também se renova, com “símbolos eloquentes”, a iniciação mistagógica (EG 166). 

Daí que a celebração memorial da Divina Misericórdia – no tempo místico da Oitava da Páscoa – torna-se um lugar teológico da catequese querigmática e mistagógica, e da “via da beleza” com seus “novos sinais, novos símbolos”. O Domingo da Misericórdia, no plano orgânico-progressivo da salvação, de caráter eminentemente temporal, é a esperança de uma profecia cultural da misericórdia, como dynamis do Espírito para o testemunho cristão ordenado à “inculturação da fé e à salvação da cultura”, pois a cultura está em “situação escatológica”; a cultura “não pode ser salva senão se associando ao repúdio do mal”; e “a cultura é o lugar em que o homem e o mundo são chamados a se encontrar na Glória de Deus” (cf. Fé e Inculturação, II, 28 e 30). 

Para isso, concorre uma teologia dos sinais dos tempos, ao buscar discernir, quanto aos desígnios divinos, a relação interna entre os “sinais/símbolos” e “os tempos e os momentos”, especialmente os kairoi, que designam eventos ou mesmo um tempo favorável, oportuno; nesse sentido, a recepção do Domingo da Misericórdia na Igreja, no início do novo milênio, pode representar o advento de um “tempo do culto e da cultura da misericórdia”, com o aprofundamento do “cristocentrismo” na perspectiva do “tempo”. A Misericórdia – já ensinou São João Paulo II – é o “limite imposto ao mal”, portanto, uma cultura da misericórdia é sua própria salvação, e, no aspecto histórico, social e político, a única capaz de manter todas as diferenças das pessoas humanas “juntas simbolicamente” (syn-ballein) e não “fragmentadas diabolicamente” (dia-ballein). 

Marcelo Cypriano Motta, advogado, contemplado com a Medalha“São Paulo Apóstolo” 2018, atua na “Promoção da Cultura da Misericórdia” no Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. 

As opiniões expressas na seção “Opinião” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editorais do jornal O SÃO PAULO

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