Profecia como vocação

Creio não cometer nenhuma blasfêmia se afirmo que, nos últimos anos, a profecia anda meio adormecida. Os escândalos da concentração de renda e desigualdade social, das agressões ao meio ambiente, da corrupção e da discriminação, das guerras e da violência contra mulheres e crianças, migrantes, negros/quilombolas, indígenas e povo de rua – tudo isso, de forma sutil e sorrateira, vem ganhando um certo ar de normalidade.

As vozes tendem a se calar. E as que ousam levantar o tom em favor da justiça, da verdade, dos direitos humanos e da paz andam dispersas pelo universo da mídia e das redes virtuais. Ou são aplaudidas, mas depois praticamente ignoradas, como as do Papa Francisco. Olhos e ouvidos – para não falar de câmaras, microfones e holofotes – voltam-se, preferivelmente, para assuntos menos polêmicos ou mais exóticos. Moda, esporte, luzes, curiosidades, espetáculos e celebridades atraem maior audiência e público.

Neste Mês das Vocações, porém, impossível ignorar a voz da profecia, tão necessária em nossos dias. O movimento profético do Antigo Testamento serve de espelho e de luz. De início, nunca foi fácil exercer tal função. Profetas como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós, Miqueias, entre outros, aceitaram não sem hesitação a missão à qual Deus lhes orientava. Toda vocação contém chamado e resposta. Mas esta última, muitas vezes, implica desprezo, impotência, perseguição e até morte. Trágico e sublime é justamente o caso de Jesus de Nazaré.

No Antigo Testamento, a profecia comporta três aspectos distintos, mas complementares: “lembra-te”, denúncia e anúncio. O “lembra-te” retoma a fé no Deus que “tirou o povo da escravidão do Egito”. E suas exigências: se o povo foi libertado pelo Senhor, agora deve acolher o órfão, a viúva e o estrangeiro. Deve estar atento e solidário diante das pessoas que mais sofrem. Como se pode ver, a opção preferencial pelos pobres tem raízes antigas.

A denúncia dirige-se aos “chefes da casa de Jacó e magistrados da casa de Israel” (Mq 3,1). No tempo do reinado, as autoridades implantam no interior do próprio povo uma opressão semelhante àquela que haviam sofrido no Egito. Repetiam em casa o que os faraós tinham feito com eles. Prevalecia a dominação e exploração da forma de Cidade-Estado sobre os camponeses. Amós e Miqueias denunciam a prática de “vender o pobre por um par de sandálias” e “fazer do povo carne de panela para comer”.

Por fim, o anúncio remete à aliança entre Deus e Israel. Desde os patriarcas, a aliança unia terra prometida e descendência numerosa “quanto as estrelas do céu ou a areia do mar”. Formação do povo e posse da terra eram inseparáveis. Os profetas retomam essa utopia que vinha desde a fundação. Isaías referia-se à Jerusalém Celeste: “Vou criar novos céus e nova terra (…). Os homens construirão casas e as habitarão; plantarão videiras e comerão seus frutos. Já não construirão para que outro habite sua casa, não plantarão para que outro como o fruto” (Is. 65,17-25). Com o profeta itinerante de Nazaré, converte-se em Reino de Deus.

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