São Francisco e a ciência da experiência

Como a espiritualidade e a mística franciscanas ajudaram a moldar a ciência moderna.

Roger Bacon em seu observatório no
Merton College, Oxford.
Pintura a óleo por Ernest Board.
Fonte: https://www.lookandlearn.com/

Ciência é uma forma de saber e de consciência humana sempre a caminho e em transformação. Cada época, pois, tem um sentido de ciência que lhe é próprio. A palavra medieval “scientia” (ciência) nomeia e evoca um saber (scire). Mas “saber” quer dizer, segundo a tradição grega, ver. Saber é ter-visto. Ver, por sua vez, é captar, intuir, ter evidência, clarividência do que se mostra (o fenômeno). Ver é, aqui, conhecer, no sentido de descobrir, abrir, desvendar o real, as realizações, a realidade. Ciência é vidência, evidência, clarividência. É o acontecer da abertura e da iluminação da realidade. Para os medievais e os antigos, o conhecimento não estava fora do real, de frente para ele. O conhecimento era a realidade se aclarando a si mesma. E a ciência era, antes de tudo, o ver simples e imediato da realidade se autoaclarando. Por isso, ciência supunha experiência. Experiência significa o imediato, direto, contato e encontro com o real, com as realizações, com a realidade. A experiência é o “meio” (elemento) no qual o homem vive. A ciência é o amadurecimento da clarividência da experiência pela compreensão do intelecto. Como o homem é um microcosmo, para os medievais a aclaração do ser humano é, já por si mesma, uma aclaração do universo. É a partir da experiência como “páthos” que cresce e emerge toda a ciência. O saber pressupõe o conhecer como receptividade ao atingimento do real no acontecer do viver humano. Nesse sentido, experiência não é algo que o homem faz, mas o que e como ele é, vive.

A experiência, tomada neste sentido amplo, fundamental, originário, vem antes de toda a observação e de todo o experimento. O homem é posto à prova pela realidade da vida, antes de pôr à prova, pelo experimento, o real. É a partir do apelo da experiência primordial e sua provocação que o ser humano sai em busca do real para conhecê-lo melhor e, assim, o pôr à prova, perseguindo-o e indagando-o, e estabelecendo conjecturas. A “experientia” dos medievais tem este sentido mais básico e amplo. O experimento dos modernos, operado como controle ativo da experiência, sustentado pelo projeto racional de matematização, tem outro sentido.

Ciência, para os antigos e medievais, era não somente apreensão, mas também compreensão. A compreensão é antes de tudo operativa e prática. É um entender no sentido de ter uma visão projetiva e antecipadora de possibilidades de ser. Compreender é, assim, um poder ser criativo. Scientia (ciência) e ars (arte), nesse sentido, se equivaliam. As artes podem ser mecânicas (artes do negócio) ou liberais (artes do ócio). As artes ou saberes confluem com as ciências filosóficas: operativas, práticas e teóricas. Estas, por sua vez, se reconduzem à “ciência universal” da fé (Teologia). O conhecimento empírico ou racional, intuitivo ou abstrativo, indutivo ou redutivo, axiomático ou dedutivo, são iluminações que emanam de Deus, o “Pai das luzes”. Todo o saber se desenvolve seja no lume natural da razão, seja no lume sobrenatural da fé-revelação divina. Toda iluminação do saber, porém, se dá no meio (elemento) da experiência da via real.

Francisco e a ciência. Podemos dizer que São Francisco de Assis foi um grande mestre da ciência da experiência em sentido primordial. Sua ciência era a vidência transparente e a clarividência do contato direto e imediato com a vida real. Sua ciência era uma experiência e clarividência radical do ser e do nada. Ele, que se chamava a si mesmo de louco, de simples e idiota, foi um dos maiores pensadores da história. Francisco era um ser humano que se media com o real da vida de uma maneira radical. “Radical” significa, aqui, desde a raiz, originário. Sua experiência de encontro corpo a corpo com o absoluto na vida real era marcada por uma espécie de desapego, de vazio, de niilidade, chamada de “pobreza”. Pelo modo radical e livre com que ele se mediu com a vida humana fática, real, ele cresceu na vidência e na clarividência, na iluminação e na leveza, de um saber que pode ser chamado de “gaia ciência”, isto é, ciência alegre, serena, jovial. Sua espiritualidade, sua mística, era uma ciência originária: a ciência do mundo da origem. Sua ciência era uma ciência universal: seguia o todo por toda a parte, acolhendo a unidade de tudo, recolhendo cada diferença neste acolhimento. Sua ciência era uma ciência hermética: consciente dos abismos da vida humana, de seu mistério e de seu silêncio. Sua ciência se tornava, nessas dimensões, uma nesciência: douta ignorância, para evocar Santo Agostinho e Nicolau de Cusa. A sua, era uma ciência mística, radicada numa profunda experiência espiritual do seguimento de Jesus Cristo pobre, humilde e crucificado, e que voava muito acima do terreno em que corriam as discussões escolásticas.

A influência franciscana na ciência nascente. A ciência experimental de São Francisco impactou na ciência de sua época. Isto que já foi chamado de “pré-decisão franciscana” tem vários êxitos na história da filosofia-teologia e da ciência ocidental. Ela teve êxitos diversos em mestres escolásticos como Alexandre de Hales, São Boaventura e João Duns Scotus. Na escola franciscana de Oxford, fundada por Grosseteste, e exemplarmente representada por Roger Bacon, a “pré-decisão” do espírito da ciência de São Francisco vigora como ciência experimental. Para Bacon, a experiência é a certificação primeira e última do conhecimento. Mas a experiência pode ser exterior (ciências naturais) e interior (ciência moral e ciência mística). Nesta escola, a ciência grega, baseada no primado do logos, da definição e da demonstração, conflui com a ciência árabe, baseada na intencionalidade e na determinação. Nela, o cosmo é entendido a partir da luz (física e metafísica da luz). Aqui começa uma interpretação geométrica da natureza, bem como as primeiras aventuras com o experimento. Aqui a alquimia se descerra como um campo apaixonado de estudos. Aqui se espera da ciência uma melhoria da vida humana, a partir de suas capacidades de inventividade e engenhosidade. Aqui todo o estudo da tradição deve ser feito a partir do conhecimento das línguas que estão à base das tradições sapienciais da humanidade. Aqui a própria metafísica se subordina à ética e todo o saber humano se reconduz para o saber da Palavra de Deus, que oferece uma ciência prática salutar, pois comunica a salvação do Deus encarnado. Roger Bacon quis convencer seu amigo, o Papa Clemente IV, de que toda a reforma da cristandade dependia, em última instância, de uma reforma dos estudos e das ciências. Algo do sonho joaquimita de uma era nova do Espírito vinha acompanhada com o sonho de uma humanidade em que a ciência e as artes abririam caminhos para uma humanidade em que a plenitude da vida pudesse se fazer sentir de uma maneira mais ampla, profunda e originária. Ressonância do espírito de São Francisco e de sua ciência originária da experiência?

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