São Francisco e a Idade Média gótica

Mais que um problema, São Francisco de Assis permanece um mistério para nós. É o santo da paz, da simplicidade, humildade e pobreza evangélica, do amor aos pobres, da alegria, da fraternidade universal. Mas, qual é a fonte de sua espiritualidade? É o encontro com Jesus Cristo pobre, humilde e crucificado. A história singular do Pobrezinho de Assis acontece como a destinação de um caminho de vida que se dá a partir desse encontro. Em que mundo espiritual esta história pode ter lugar? Podemos chamar de Idade Média gótica a este mundo. 

Antes dela, o medieval vive por séculos em um mundo de feudalismo, de austeridade monástica, de penitência, de um cristianismo marcado pelo temor do juízo final, em meio a uma cristandade que se entendia a partir do pensamento da “cidade de Deus” etc. Foi, como disse Chesterton, uma noite demorada e austera, mas uma noite de vigília, em que não faltara a visita das estrelas. A arte românica expressa o fim dessa noite. 

Nos séculos XII e XIII, porém, sopram ares de primavera. O fenômeno do amor cortês na aristocracia cavalheiresca, o renascimento urbano, o surgimento de cidades-repúblicas com espírito democrático, a mística feminina, a profecia da nova era do Espírito feita por Joaquim de Fiori, o viço das escolas e a invenção das universidades, a chegada de Aristóteles e dos escritos dos pensadores árabes e a irrupção da escolástica participam dessa novidade. Na leitura do Apocalipse de Hildegarda de Bingen, a aterrorizante imagem do Juiz que está às portas cede lugar para a revigoradora imagem do Esposo que retorna e que traz a primavera, após longo inverno. A arte gótica expressa esse novo amanhecer.

No centro da vida religiosa cristã, o Cristo que domina sobre um trono e que julga os povos dá, então, o lugar ao Cristo crucificado. Nos movimentos pauperistas e evangelistas, os pobres e sofredores põem a fé no Cristo pobre, humilde e crucificado, e sentem o anseio de um retorno ao evangelho. No Cristianismo, a cruz deixara de ser simplesmente um símbolo cósmico e passara a ser o símbolo fundamental do evento crucial da redenção humana por Jesus Cristo. No entanto, demorou séculos para que o Cristo assumisse, de fato, na cruz o sofrimento e a morte. Uma segunda kénosis (esvaziamento) e uma segunda morte de Jesus Cristo acontecem no espírito do homem gótico. Para a sua fé, a deidade de Deus se mede segundo a medida de sua humanidade. Um Deus encarnado na carne do ser humano, capaz de sofrer a dor mais abissal, por amor, é o Deus vivo. A figura da pietà, da compadecida, vem reforçar esta intuição. 

Por volta de 1200 uma nova experiência de fé e de arte emerge na história medieval. A humanidade de Deus aparece não só no sofrimento amoroso da cruz. O ponto de contato entre o divino e o humano passa a ser também a Mãe humana de Deus e sua criança pobrezinha. Lembremos que é a visão dramatúrgica de São Francisco, a propósito deste mistério da encarnação, que o levará a inventar o presépio. Não só o sofrimento, mas também a ternura, será experiência de contato entre o humano e o divino. As catedrais góticas serão dedicadas à Mãe de Deus. Nas suas entradas, Maria aparecerá com a criança aos braços, aparecerá também como a coroada, e ainda será recordada nas rosáceas. Toda esta espiritualidade fará aparecer o universo, o mundo criado, no brilho de um realismo sagrado. A carne, o corpo de Cristo, é o eixo da salvação. Todo o ser corpóreo aparece então como portador da força do sagrado. Criação é repercussão da participação na filiação do Filho de Deus feito homem. Doravante, todas as criaturas poderão ser acolhidas como irmãs. O Cântico do Irmão Sol de São Francisco poderia, então, ecoar. 

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