O SÃO PAULO apresenta iniciativas que possibilitam um pouco de dignidade a pessoas em situação de vulnerabilidade social
Sabe aquele gesto que contagia, inspira e se multiplica por meio de iniciativas que formam uma verdadeira corrente do bem? A atual pandemia parece ter feito crescer o número de voluntários e de iniciativas de doações, que proporcionam uma melhor qualidade de vida às pessoas em situação de pobreza.
O Papa Francisco, em uma de suas homilias, destacou que os voluntários são “a mão de Cristo estendida”; em outra oportunidade, salientou que “o serviço de voluntariado solidário é uma escolha que torna livres e abertos às necessidades do outro; às exigências da justiça, à defesa da vida… A cultura da solidariedade e da gratuidade qualifica o voluntariado e contribui concretamente com a construção de uma sociedade fraterna”.
Órfãos da COVID-19
Em Manaus (AM), o projeto “Eu amo meu próximo”, idealizado pela educadora e diretora do Instituto de Pesquisa e Ensino para o Desenvolvimento Sustentável (Ipeds), Glauce Galucio, tem por objetivo amparar crianças recém-nascidas, adolescentes e jovens que perderam seus pais para a COVID-19.
Na pandemia, Glauce foi surpreendida por pedidos de ajuda de famílias que precisavam de leite, fraldas, produtos de higiene, brinquedos e roupinhas para as crianças.
“É muito triste ir à casa ou receber uma ligação das pessoas e saber que a mãe ou o pai e, em alguns casos, os dois faleceram, e as crianças, mesmo assistidas por parentes, estão passando necessidade”, disse Glauce, destacando que, a partir dessa realidade, viabilizou o projeto para amenizar o sofrimento.
“Nós convocamos voluntários, padrinhos e madrinhas que podem ajudar essas crianças doando alimentos, leite, kits de higiene, fraldas. São crianças que não estão em abrigos nem estão em programa de adoção. Elas se encontram no seio familiar, com algum parente”, explicou a idealizadora.
Mãos que acolhem
Das 35 crianças que o projeto atende atualmente estão os filhos de Anderson Lima, 26, que perdeu, no mês passado, a esposa, Joene, 28, após o parto das gêmeas, Ana Carolina e Ana Catarina.
“Minha esposa fez o teste de COVID-19 quando entrou na maternidade e o resultado foi negativo. Logo após o nascimento das meninas, ela começou a sentir os primeiros sintomas e, infelizmente, não resistiu”, disse, emocionado, o pai que cuida, com a ajuda da sua mãe dos quatro filhos e no momento está desempregado e morando de aluguel.
“O projeto ‘Eu amo meu próximo’ me estende as mãos neste momento de dificuldades. Como minhas filhas são recém-nascidas, precisam de um leite especial que custa R$ 50,00, além de fraldas que são caras e cestas básicas”, contou o pai.
Luciana Deutscher é psicóloga e destaca que as perdas precoces podem gerar impactos psicológicos na vida das crianças, adolescentes e jovens.
“Por vezes, os adultos acham que as crianças não entendem o que está acontecendo e, sim, é preciso muita atenção, e o diálogo é fundamental em todas as etapas. Crises de ansiedade, depressão, sensação de abandono, mudanças de comportamento, dificuldade em manter o foco são sinais de alerta”, disse Luciana, destacando a importância de que, independentemente da idade, sejam acolhidos emocionalmente, e a ajuda profissional é imprescindível.
Já no presente a esperança de um futuro melhor
Com mais de 20 mil crianças atendidas e 400 mil itens de doações entregues, o Instituto Criança Mais Feliz RS, de Porto Alegre (RS), oportuniza doações a milhares de crianças e famílias em situação de pobreza.
Nara Sonalio, 44, é produtora audiovisual, presidente e fundadora do Instituto. Começou a ajudar voluntariamente famílias atingidas, em 2015, pelas enchentes ocorridas em Porto Alegre e região.
A partir dali, as ações se intensificaram e nunca mais ela parou de ajudar quem precisa, e hoje conta com a colaboração de mais de 200 voluntários.
“Esta, definitivamente, é a missão da minha vida. Tenho muito orgulho de ter conquistado e construído essa ampla rede de solidariedade. Sou apenas uma ponte entre as centenas de pessoas que querem doar e não sabem como, e as milhares de crianças que precisam de todo tipo de ajuda, nós estamos aqui para atendê-las”, disse Nara.
Ao todo, mais de 50 comunidades da capital, 18 cidades gaúchas e outras regiões daquele estado já foram atendidas pela organização com cestas básicas, brinquedos, roupas, material escolar, entre outras doações.
Fazer a diferença
Um diferencial do Instituto Criança Mais Feliz RS é olhar para além das necessidades básicas, levando o amor e a felicidade, resgatando sorrisos e possibilitando o acesso à saúde e à educação.
“Uma criança mais feliz é a semente plantada para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa”, afirmou a idealizadora do projeto.
“O Instituto tem o olhar de uma criança e sabe o que faz uma criança feliz. Gratidão é a única palavra que define tudo que sentimos”, afirmou Jacira Bernardino, mãe do Josué, beneficiado pelo Instituto.
Com a chegada da pandemia, a fundadora viu o número de pedidos de ajuda aumentar consideravelmente e precisou readaptar a logística de entrega das doações. Para continuar a atender as famílias prejudicadas pela crise causada pela COVID-19, o CriançaMais Feliz RS lançou uma campanha de arrecadação de alimentos e, em 25 dias, foram arrecadadas 5 toneladas de alimentos, 2 mil litros de leite e mais de 500 quilos de produtos de higiene. Máscaras, roupas e calçados.
“Um ano de pandemia e hoje os pedidos são basicamente de mães ‘implorando’ por comida, e essa demanda só aumenta”, salientou Nara.
Alexandra de Medeiros é tia da Sabrina, de 15 anos, que é cadeirante desde criança. Para ela, as ações do Instituto dão um novo sentido à vida.
“OCriança Mais Feliz RS, para mim, significa doar amor, esperança a quem precisa, e muitas vezes um olhar, um simples gesto de estender a mão ao próximo, já faz muita diferença na vida daqueles que precisam de ajuda”, disse.
“Hoje sei o real significado da palavra altruísmo: é fazer sem esperar absolutamente nada em troca. Sou muito feliz em saber que faço a diferença na vida dessas crianças”, afirmou Nara.
Com.Vida
A dentista Raquel Trevisi, 39, de Presidente Prudente (SP), foi internada em 2020 em decorrência da COVID-19. Sem comorbidades e praticante de atividades físicas, ela acreditava que o seu quadro não se tornaria grave.
No entanto, o estado de saúde piorou e foram 20 dias na UTI, 16 dos quais entubada. Os pulmões de Raquel foram severamente comprometidos. Após a alta hospitalar, iniciou uma rotina intensa para se recuperar das complicações deixadas pela COVID-19.
“Fiquei internada e, mesmo com um bom preparo físico, saí do hospital com um quadro, posso dizer, de tetraplegia temporária, onde só movimentava um pouco o pescoço. Tive que reaprender a andar, tive que reaprender as tarefas básicas do dia a dia”, recordou, destacando, ainda, que da doença nasceu o projeto “Com. Vida”.
A iniciativa tem a missão de servir e ser uma ponte entre as pessoas que necessitam de assistência na busca pela recuperação das sequelas do pós-COVID e que não têm condições financeiras para custear o tratamento.
“Sou privilegiada por ter conseguido pagar o tratamento que foi caro, fui bem cuidada por uma equipe de profissionais. No entanto, sempre me preocupei com quem não pode ter o mesmo que eu, por isso, o projeto nasceu da vontade de ajudar quem precisa”, disse.
A dentista convocou nas redes sociais profissionais de saúde voluntários que pudessem oferecer, de forma gratuita, on-line ou presencial, tratamentos de reabilitação às pessoas de baixa renda com sequelas da COVID-19.
“Hoje tenho um grupo de voluntários de várias áreas da saúde (médicos, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas), que se dedica e doa seu tempo, conhecimento e amor a quem precisa de ajuda”, contou, ressaltando que a maioria dos atendimentos são feitos via telemedicina, e os voluntários estão espalhados pelo Brasil, o que facilita uma maior abrangência do projeto.
Luciana Deutscher é também voluntária do projeto. “É muito importante o exercício da empatia, poder ajudar o próximo com a minha profissão, com o que eu conheço e o que eu sei e posso fazer pelo outro”, disse, ressaltando que montou um protocolo de atendimento efetivo para ajudar no pós-alta hospitalar aliviando a dor, a ansiedade e um retorno às atividades do cotidiano.
‘Cozinha Solidária’
A pandemia agravou para milhões de brasileiros o drama da falta de comida na mesa. A “Cozinha Solidária” é um projeto nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e nasceu do contexto de miséria decorrente da crise que o mundo vive.
“No ano passado, fizemos uma arrecadação que ajudou mais de 21 mil famílias com 12 mil toneladas de cestas básicas e 81 mil quentinhas”, disse Ana Paula Perles Ribeiro, 37, professora de Sociologia, coordenadora nacional do MTST e da “Cozinha Solidária”.
“Hoje, o projeto tem o objetivo de garantir cem refeições por dia em 16 cozinhas espalhadas em 11 estados: as de SP, AL e RJ já foram inauguradas, as de MG, RS, GO, DF, RR, CE, PE, SE serão inauguradas até o mês de maio de 2021. Em São Paulo, inauguramos a primeira na Brasilândia, e estão em fase de mutirão as cozinhas da zona Leste e de Santo André, e em fase de planejamento, as cozinhas da zona Sul e de São Carlos”, disse a coordenadora.
Os voluntários são integrantes do movimento, moradores e lideranças dos bairros e pessoas independentes que entram em contato ao ter conhecimento do projeto para ajudar na rede de abastecimento.
“A rede de doações está organizada a partir de doações arrecadadas numa plataforma digital, doações no próprio bairro e de pessoas que se organizam por conta própria com alimentos e materiais de higiene”, destacou a jovem, consciente de que com a ajuda de todos é possível aliviar a fome. “Nossa essência não nos permite ficarmos parados diante de tanta miséria”, afirmou.
Milagre da multiplicação
Maria Paulina Avelino Marques da Silva, 69, conhecida como Vovó Tutu, é nascida e criada na Brasilândia, na zona Noroeste de São Paulo. Junto com os filhos, Vovó Tutu tinha um restaurante de comida caseira, que, por conta da pandemia, precisou fechar as portas ao público.
Com as medidas de isolamento, em casa não ficou parada, resgatou uma paixão antiga: a panificação. Começou a produzir pães em sua cozinha e distribuir para as famílias do bairro, uma medida para saciar a fome.
“É muito triste acordar e não ter um pão para dar aos seus filhos. Passei por isso, criei seis filhos biológicos sozinha e adotei quatro, mas sempre tive pessoas que me estenderam as mãos. Há 20 anos atuo em trabalhos sociais”, recordou “Vovó Tutu”.
“Desde que comecei, a fila do pão cresce a cada dia, e isso me preocupa porque mostra a real situação de fome, de desemprego e da inflação dos alimentos que estamos enfrentando”, disse, destacando ainda que tudo é feito graças à doação dos ingredientes para a fabricação dos pães.
Atualmente, são mais de 1.200 pães distribuídos por dia. Maria Cunha é pensionista e recorre, diariamente, aos pães para garantir o lanche da casa. “A generosidade da Vovó garante para muitas famílias o alimento em nossas mesas”, disse.
Pão da Palavra
Rodrigo Soriano, 34, de São José dos Campos (SP), criou o projeto “Crescimento do Reino”, pelo qual distribui Bíblias para as pessoas carentes, em centros de recuperação para dependentes químicos, famosos e anônimos.
“Jesus veio para todos. Desde o rico ao pobre, independentemente de cor. Todo mundo precisa de Cristo”, afirmou Soriano.
O projeto acontece graças à ajuda de voluntários que ajudam na aquisição das Bíblias, parcerias com editoras e livrarias.
“Pensei em Bíblias porque nem todo mundo vai ler um livro, mas a Bíblia, independentemente da religião, a pessoa não joga fora e uma hora acaba lendo”, disse.
O foco dessa ação é, com o ensinamento de Jesus “Ide pelo mundo e pregai o Evangelho” (Mc 16,15), continuar a missão de Cristo. “É fundamental cuidar e ajudar com mantimentos, mas, cultivar e ajudar na vivência da fé, é imprescindível”, destacou o jovem.
Fazer o bem
Na Paróquia São José, em Paraisópolis, o Padre Luciano Borges destaca as ações comunitárias e evangélicas a serviço da população vulnerável do bairro que é considerado a segunda maior favela da capital.
“A minha missão enquanto pároco é guiar e conduzir o rebanho a Cristo. Aliado a isso, o nosso trabalho tem sido de assistência às famílias carentes, com cestas básicas que nos são doadas, ajuda com medicamentos, auxílio funerário, entre outras ações que ajudam a amenizar o sofrimento que nos rodeia”, disse o Padre, destacando a importância de estender a mão e recordou, ainda, que o momento atual exige um olhar caridoso aos irmãos que sofrem à nossa volta.