Na última semana, uma frente fria intensa atingiu diversas regiões do Brasil, ocasionando a queda drástica das temperaturas. Na capital, os termômetros registraram marcas abaixo de 8ºC, fato que movimentou as organizações sociais, o poder público e entidades da Igreja em ações concretas para amenizar o sofrimento das pessoas que vivem em situação de rua.
A mudança de temperatura atinge de modo particular os mais vulneráveis. Segundo o Censo da População em Situação de Rua, divulgado pela Prefeitura de São Paulo em janeiro deste ano, entre 2019 e 2021 aumentou 31% os que vivem nessa condição, passando de 24.344 para quase 32 mil pessoas.
Para aquecer parte dessa população, houve a montagem de tendas da Prefeitura em diferentes pontos da cidade, além de abrigos temporários na estação Pedro II do Metrô e em espaços mantidos pela Igreja, como a Casa de Oração do Povo da Rua, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), a Missão Belém e a Catedral da Sé. Nesses locais, foram distribuídos cobertores, mantas térmicas, agasalhos, refeições e bebidas quentes à população em situação de rua. Além disso, missionários e voluntários foram às ruas ao encontro de quem estava com fome e frio, levando refeições quentes e cobertores.
Também o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, fez um apelo a todas as pessoas de boa vontade: “Tenhamos sempre o nosso pensamento voltado para os pobres. Se pudermos ajudar com uma comida quente, uma roupa, um cobertor, isso é muito bom para que as pessoas não morram de frio. Muitos estão passando frio pelas ruas, pelas praças. Que Deus nos livre de ter que responder depois por algum irmão que passou por frio e morreu em razão da nossa indiferença e do nosso coração fechado”, disse no programa “Encontro com o Pastor”, da rádio 9 de Julho, no dia 18.
MOVIMENTAÇÃO INTENSA NA CASA DE ORAÇÃO
A Casa de Oração do Povo da Rua, no bairro da Luz, é mantida pela Arquidiocese de São Paulo, por meio do Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, cujo Vigário Episcopal é o Padre Julio Lancellotti.
Diariamente, lá é servido o café da manhã e são produzidas cerca de 700 marmitas, que são distribuídas em ruas e praças da cidade. No local, há também a entrega de roupas, cobertores e itens de higiene pessoal obtidos por meio de doações. Ana Maria Alexandre, coordenadora da Casa de Oração do Povo da Rua, enfatizou que, para os dias de frio, foram dispostos no chão da capela colchões para as pessoas em situação de rua se abrigarem do frio e do vento.
“É significativo acolher em nossa capela quem está na rua. É um gesto evangélico, humano e humanizador”, disse a coordenadora. “É nossa missão acolher e aquecer o corpo dos irmãos que sofrem”, afirmou, elucidando que no local foram colocados 80 colchões para o pernoite.
Enquanto na rua o frio atingiu 6ºC na noite de 18 de maio, a cozinha da Casa de Oração do Povo da Rua estava aquecida pelo fogo que cozinhava a sopa que alimentaria centenas de pessoas. Enquanto cozinhava, Ana Maria e os voluntários estavam preocupados porque não tinham mistura para as refeições do dia seguinte. “Tudo aqui é fruto de doações. Deus sempre envia ‘anjos’ com donativos”, afirmou Ana.
Paula Teruco, 54, que trabalha nas imediações, ao passar em frente à Casa de Oração, decidiu entrar e fazer uma doação de carnes. “Fiquei impressionada com o trabalho bonito e importante que este lugar promove – um local de amor, compaixão e acolhida”, disse Paula, que também se voluntariou para contribuir em alguns dias da semana na acolhida e na distribuição das sopas nas ruas da capital.
Bárbara Celestino, 40, organizadora de eventos, perdeu o emprego no início da pandemia. Sem condições de pagar aluguel, a rua foi o local para onde se mudou com o esposo e os quatro filhos. Desde então, vive de doações.
À noite, chegou à Casa de Oração do Povo da Rua com as filhas Laura, 7, e Paloma, 3, em busca de um prato de sopa e abrigo para fugir do frio e do vento. “Sei que aqui sou acolhida com amor e respeito”, afirmou ela, que nas noites frias vai dormir no local, enquanto o esposo e os outros dois filhos ficarão em outra instituição. “Meu maior desejo é conseguir um emprego e poder sair das ruas”, disse.
Além das refeições distribuídas na sede, em uma kombi marmitas são levadas aos que vivem pelas ruas da cidade.
DE PORTAS ABERTAS
A região central da cidade e os entornos da Catedral Metropolitana de São Paulo são marcados pela incidência de pessoas em situação de rua. Em iniciativa inédita, a Catedral da Sé abriu as portas para acolher, à noite, 20 “irmãos de rua” no período das baixas temperaturas da última semana.
Fabiano Cesar, 43, estava nas ruas havia menos de uma semana. Entrou na Catedral chorando e tremendo de frio, descalço e vestindo uma bermuda. Foi acolhido pelo Padre Luiz Eduardo Pinheiro Baronto, Cura da Catedral, e pelo Padre Julio Lancellotti, que o ajudaram a se deitar no colchão, o cobriram para se aquecer e ofereceram um prato de comida.
Aos poucos foram chegando mais pessoas, e rapidamente as 20 vagas estavam preenchidas.
“Esse gesto é fruto do Evangelho e do mandamento do Amor. Frente à urgência e necessidade que vemos à nossa volta, acolher é nossa missão”, disse Padre Baronto, recordando as várias ações realizadas pela Arquidiocese em favor dos mais pobres.
“Neste período de frio, a Catedral, Igreja Mãe que emana para todas, ao abrir suas portas é um exemplo, um sinal e um testemunho. Que outras igrejas façam o mesmo”, salientou Padre Julio Lancellotti.
Padre Zacarias José de Carvalho Paiva, Pároco e Reitor do Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora Aparecida e Assistente Eclesiástico para a Pastoral Familiar, trouxe 130 cobertores, caixas de leite e chocolate em pó, doações dos paroquianos do Santuário.
“Os paroquianos decidiram participar dessa ação aqui na Catedral, unindo as forças para aquecer neste frio”, afirmou, ressaltando que as paróquias e comunidades da Arquidiocese estão recolhendo doações em prol dos que estão na rua e de outras pessoas em situação de vulnerabilidade.
MAIS FAMÍLIAS NAS RUAS
Mantido pelo Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), o conhecido “Chá do Padre”, no centro da cidade, oferece suporte social e jurídico, atividades socioeducativas, políticas, culturais, e distribui em média 1,2 mil refeições todos os dias. No período do inverno, disponibiliza 100 vagas para o pernoite no local.
Cleber Rosa dos Santos, supervisor de projetos do Sefras, ressaltou que a entidade se empenha em combater a fome, as violações de direitos e a exclusão econômica e social das pessoas em situação de vulnerabilidade extrema.
“Há 14 anos, o Sefras atua nas realidades humanas periféricas. Nosso carisma e missão é estar ao lado, se igualar, humanizar nosso irmão que sofre à margem da sociedade”, afirmou. “Não se trata de assistencialismo e, sim, de resgate da dignidade humana. É necessário e urgente erradicar a pobreza e a realidade de pessoas que sobrevivem nas ruas”, pontuou.
Santos destacou também que por causa da pandemia, a demanda de procura pelas ações do Sefras aumentou e “esse é um dado que representa não só em relação ao crescimento quantitativo, mas do aumento de famílias, mulheres e pessoas em situação recente de rua que perderam emprego e condições de moradia”, resumiu.
Marcio Borges, 42, veio de Montes Claros (MG) a trabalho para São Paulo. No período de experiência, foi demitido e, sem dinheiro para retornar à cidade natal, está há 15 dias na rua.
“A demissão e esse frio me pegaram de surpresa. Na rua, passo meus dias e vim até aqui em busca de um local para dormir e fugir do frio”, disse, pedindo um sapato, pois estava descalço e com frio nos pés, pois seu chinelo havia arrebentado.
Nestes dias mais frios, além das 100 vagas para abrigamento emergencial no Chá do Padre (Rua Riachuelo, 268, Centro), outras 50 foram abertas na Casa Franciscana (Rua Otto de Alencar, 270, Cambuci).
A CASA DE QUEM NÃO TEM CASA
Na noite do dia 18, uma das mais frias do ano, quando os termômetros no centro da cidade marcavam 6ºC. Daniel andava pela Praça da Sé quando viu as portas do Edifício Nazaré abertas e decidiu entrar. “Nossa, como está muito frio lá fora. Estava vagando à procura de um espaço para me aquecer”, disse à reportagem, enquanto recebia um agasalho e um prato de sopa quentinha. “Esse lugar é uma bênção para nós.”
O Edifício Nazaré é uma das casas de acolhida mantidas pela Missão Belém. Diariamente, mais de 100 pessoas ali chegam em busca de abrigo, comida, roupas, cobertores e uma palavra amiga, procura que é ainda mais intensa em dias frios, como os da última semana.
Desde 2005, a Missão Belém, fundada pelo Padre Gianpietro Carraro, 59, e a Irmã Cacilda da Silva Leste, atua no resgate de pessoas em situação de rua e em drogadição. Nesses 17 anos, mais de 100 mil pessoas foram acolhidas pela Missão. Atualmente, são assistidos 700 enfermos que antes viviam nas ruas e são acolhidos 2,3 mil “irmãos de rua”, em 180 casas, tudo isso feito de forma gratuita e voluntária.
Em entrevista ao O SÃO PAULO, Padre Gianpietro recordou que sua vocação para estar junto dos mais pobres surgiu quando ainda era jovem e se deparou com as gritantes problemáticas dos abandonados e excluídos em seu país natal, Itália.
“Minha vocação é estar junto dessas pessoas, sentar com elas no chão da calçada, para ouvi-las, levantá-las – é um gesto de imersão, descer onde elas estão; nesse gesto e olho no olho, começa uma relação de empatia e acolhimento, inspirado pelas atitudes do próprio Jesus. É fazer-se um com eles, é um ir ao encontro, amar, acolher e servir”, disse o Sacerdote, radicado no Brasil há 28 anos.
“Nesse gesto, as pessoas se sentem tocadas, seja pelo relacionamento humano, seja pela oração, e assim aceitam sair da Cracolândia ou da rua e vir conosco até os centros de acolhida”, disse o Padre.
O Sacerdote reforçou que a Missão Belém age pela evangelização e não somente por assistência social: “Com a obra, queremos transmitir o amor de Deus e resgatar o sentido da vida dessas pessoas. E, claro, para quem nada possui, esse amor também é comida, roupa, cuidados médicos etc.”.
Em breve, a Missão Belém vai iniciar as obras de uma casa de apoio para acolher 200 doentes graves, no bairro do Belenzinho, na zona Leste. “É uma iniciativa que vem para se somar às atividades já realizadas. São muitas as realidades de doentes graves resgatados das ruas e que precisam de um espaço para acolhida e tratamento”, pontuou Padre Gianpietro.
ACOLHIDA MISERICORDIOSA
Rogério Janucci, 47, chegou da Itália ao Brasil quando criança. Na juventude, sofreu um acidente e ficou paraplégico. Há cinco anos vive nas ruas. Em busca de comida, chegou ao Edifício Nazaré.
“Aqui é um lugar de Deus. Aqui sou alimentado física e espiritualmente”, disse Janucci, que é devoto de São Francisco de Assis “o pai dos pobres, que se fez pobre com os pobres”, descreveu.
Wilson de Sousa, 45, falou à reportagem sobre a acolhida que recebe toda vez que vai ao local. “Desde que cheguei à Missão Belém, ninguém perguntou o que eu fiz de errado, simplesmente me abraçaram, retribuíram um sorriso e me ofereceram comida, banho e uma roupa limpa”, disse, ressaltando “por estar na rua, até achei que Deus já tinha tirado a mão de mim e que eu iria morrer largado na rua”, contou o homem, lembrando a misericórdia de Deus e as ações concretas da Missão Belém e, de modo particular, o amor, a atenção que o Padre Gianpietro oferece a quem chega à casa.
COLABORE!
Outras organizações da Igreja, como a Missão Paz, a Missão Eucarística Voz dos Pobres, a Aliança de Misericórdia e o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar), têm um permanente trabalho de atenção às pessoas em situação de vulnerabilidade e também pedem doações, especialmente nestes dias muito frios.
Estas e outras iniciativas caritativas, incluindo as realizadas por muitas paróquias da Arquidiocese, podem ser encontradas na plataforma Animando a Esperança. Acesse e colabore: https://arquisp.org.br/animando-a-esperanca.