O século dos mártires

A história da Igreja no século XX é marcada pelo testemunho de inúmeros cristãos que derramaram o sangue em nome da fé

Juliane/Cathopic

Entre os dez novos santos canonizados pelo Papa Francisco no domingo, 15, dois eram mártires – o frade carmelita holandês Tito Brandsma e o leigo indiano Lázaro – e chamam a atenção para o testemunho dos milhões de cristãos martirizados. 

Embora, na história da Igreja, os primeiros séculos do Cristianismo tenham sido marcados pela chamada era dos mártires perseguidos, sobretudo pelo Império Romano, em números absolutos, o século passado foi o período em que mais cristãos derramaram seu sangue por causa da fé. Se forem somados os martírios das primeiras duas décadas do século XXI, esse número é ainda maior. 

Em um discurso de 2018, o Papa Francisco ressaltou que o martírio se confirma cada vez mais atual. “No passado, jogavam os cristãos às feras no Coliseu para fazer espetáculos. Hoje, porém, no anonimato, no esquecimento, e muitas vezes quando estão rezando na igreja ou celebrando missa, os cristãos ainda são vítimas do ódio e da perseguição, mas a disposição da alma é a mesma, ontem como hoje”, afirmou. 

QUEM É MÁRTIR? 

São Paulo VI, ao beatificar um grupo de mártires coreanos, em 1969, refletiu: “Quem é mártir? O nome já é um elogio paradoxal. Dois elementos dão com eficácia extraordinária o significado: o testemunho e o sangue. Esses são os elementos da manifestação extraordinária de Deus na fé e na fortaleza de um seguidor de Cristo. O mártir escreve a sua fé com sangue. Proclama com seu sacrifício que a verdade que ele possui e pela qual se deixa morrer vale mais do que a sua vida temporal, porque a fé é a sua nova vida sobrenatural, presente e pela eternidade…”. 

MODELO E INSPIRAÇÃO 

Na mesma homilia mencionada, São Paulo VI afirmou que o “Martirológio”, conjunto dos relatos dos martírios dos primeiros séculos da Igreja, deveria voltar a ser um livro da moda na Igreja. Inspirado na tradição do Martirológio, São João Paulo II, por ocasião do Jubileu do ano 2000, instituiu a Comissão dos Novos Mártires, que, como ele afirmou durante uma celebração no Coliseu naquele mesmo ano, tinha o objetivo de “enriquecer e atualizar a memória da Igreja com os testemunhos de todas as pessoas, mesmo desconhecidas, que ‘arriscaram a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo’ (At 15,26)”.

Essa comissão recolheu e catalogou mais de 12 mil histórias de cristãos mortos no século XX. São testemunhos provenientes de todas as partes do mundo, de diferentes atos e escritos em muitas línguas. 

NOVOS MÁRTIRES 

O material da Comissão dos Novos Mártires foi objeto de pesquisa do historiador italiano Andrea Riccardi, que escreveu o livro “O século do martírio – Os extermínios coletivos e o martírio individual dos cristãos do século XX”. 

“Quantos cristãos foram mortos no século XX por causa da sua fé? Não só católicos, mas cristãos de todas as confissões. Talvez 3 milhões? Se pensarmos que na Rússia foram mortos pelo menos 500 mil, talvez se possa aceitar esta hipótese. Se pensarmos, além disso, nos cristãos mortos no Império Otomano durante a 1a Guerra Mundial, nos missionários, nos mortos nos conflitos étnicos… O século XX foi, em geral, um período difícil para os cristãos em condições de minoria em países dominados por uma outra religião maioritária, especialmente nos países de maioria muçulmana (mas também de outra fé). A Argélia dos últimos anos presenciou muitos assassínios de cristãos, como os sete monges trapistas de Notre Dame de l’Atlas, mortos pelos terroristas islâmicos”, escreveu o historiador. 

Também os países de tradição secular católica presenciaram o assassínio em massa de cristãos, como, por exemplo, os mártires da guerra civil espanhola. Mas também o México dos anos 1920 conhece o martírio de muitos cristãos na sanguinária guerra civil “cristera”. 

Por trás de muitas perseguições es- tavam ideologias ateias, anticlericais, formas de idolatria. Mas não apenas isso. Muitas vezes, a violência dirigiu-se contra os cristãos de forma brutal só por motivos materiais e contingentes, como o caso do padre italiano Giuseppe Puglisi, assassinado em 1993 pelos mafiosos em Palermo. “Muitas vezes, os simples católicos ou os padres ou os religiosos apareceram como uma barreira à injustiça e foram eliminados pela resistência que opunham e pela coragem que davam às pessoas: muitas dessas histórias se desenrolaram na África ou na América Latina”, salientou Riccardi, recordando o exemplo do bispo salvadorenho Santo Oscar Romero. 

Somam-se às causas de martírio de cristãos no século passado a perseguição do Estado, como nos países comunistas e pelo nazismo. Na Ásia e na Oceania, durante a 2º Guerra Mundial, milhares de cristãos foram eliminados. Em muitos casos, a guerra e as lutas étnicas são o terreno em que os cristãos são atingidos. Em outros, dizem respeito a mulheres que resistem à violência, inclusive sexual, como a italiana Santa Maria Goretti e a brasileira Beata Albertina Berkenbrock, mártires da pureza. 

UNIDOS À CRUZ 

Essas são as razões históricas dos martírios do último século. Contudo, o derramamento de sangue de cristãos não se fundamenta apenas em elementos sociais, políticos e culturais, mas na fé. 

“Onde se fundamenta o martírio? A resposta é simples: na morte de Jesus, no seu sacrifício supremo de amor, consumido na Cruz, a fim de que nós pudéssemos ter vida (cf. Jo 10,10). Cristo é o servo sofredor de que fala o profeta Isaías (cf. Is 52,13-15), que se entregou a si mesmo em resgate por muitos (cf. Mt 20,28)”, afirmou o Papa Emérito Bento XVI, em uma catequese de 2010. 

“Quando lemos a vida dos mártires, ficamos admirados com a tranquilidade e a coragem com que eles enfrentaram o sofrimento e a morte: o poder de Deus se manifesta plenamente na debilidade, na pobreza daquele que se confia a Ele e deposita a sua própria esperança unicamente Nele (cf. 2 Cor 12,9)”, acrescentou o Bento XVI, ressaltando, no entanto, que a graça de Deus não suprime nem sufoca a liberdade daqueles que enfrentam o martírio, mas, ao contrário, a enriquece e a exalta. 

“O mártir é uma pessoa sumamente livre em relação ao poder e ao mundo; que num único gesto definitivo entrega toda a sua vida a Deus, e num supremo gesto de fé, de esperança e de caridade, abandona-se nas mãos do seu Criador e Redentor; sacrifica a própria vida para ser associado de maneira total ao sacrifício de Cristo na cruz. Em síntese, o martírio é um grande gesto de amor, em resposta ao amor imenso de Deus”, completou o Papa Emérito, recordando a máxima de Tertuliano, um dos padres da Igreja dos primeiros séculos: “O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”. 

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