Uma agenda para cuidar de quem cuida: a família

Elaborado pelo Family Talks, documento indica seis prioridades para políticas públicas em favor das famílias brasileiras

August de Richelieu/Pexels

“Está cada vez mais difícil ser família no Brasil, e a causa dessa triste realidade é a falta de apoio público ao cuidado – ou o que se convencionou chamar crise do cuidado. Por isso, mobilizamos empresas, sociedade e governo para que promovam o apoio de que as famílias precisam para funcionar e cuidar de todas as pessoas.” 

Este é um dos trechos do documento “Cuidar de quem cuida – uma agenda urgente pelas famílias no Brasil”, lançado pelo Family Talks (www.familytalks.org), grupo que desde 2017 acompanha estudos internacionais, participa de debates no Brasil, promove pesquisas e dissemina conteúdos junto a empresas, governos e a sociedade em geral, a fim de pensar estratégias para que as famílias recebam mais apoio para seu desenvolvimento, em esferas como trabalho, educação, renda e saúde. 

No Brasil, conforme os dados compilados na agenda, pouco mais de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) é investido no cuidado, enquanto países como a Suíça, França e Alemanha investem em torno de 4%. 

“Essa falta de apoio público ao cuidado acaba por penalizar, de modo particular, as famílias mais pobres, que não possuem renda suficiente para contratar serviços de apoio para tanto”, lê-se em um trecho da agenda, na qual há um comparativo sobre essa disparidade: enquanto famílias com renda de oito ou mais salários mínimos gastam em média R$ 4,5 mil mensais com cuidado e educação dos filhos, nas famílias com menos de dois salários mínimos esse valor é de R$ 956. 

Artes: Family Talks

ESTRUTURAÇÃO 

A agenda está estruturada em três eixos: trabalho e renda; vínculos e educação; e apoio ao cuidado.

“O primeiro volta-se à garantia de trabalho digno para as famílias e a proteção da renda, condição básica de subsistência das famílias. Um segundo passo é o fortalecimento de vínculos familiares, sobretudo a educação parental, que tem como objetivo o fortalecimento interno da família. E o terceiro passo, o apoio público ao cuidado, é algo a ser feito de forma solidária pela sociedade e o Estado, a fim de diminuir o tempo e o esforço que as famílias gastam para o cuidado. E, no âmbito de cada eixo, definimos duas prioridades, chegando a um total de seis”, explicou, ao O SÃO PAULO, Rodolfo Canonico, diretor executivo de Family Talks. 

EIXO 1 – TRABALHO & RENDA 

Um dos dados apresentados neste eixo é o de que 50 milhões de pessoas no Brasil, 24,1% da população, vivem com menos de US$ 1,90 por dia; e que há 33,6 milhões de trabalhadores informais, uma situação que atinge de modo mais intenso as mulheres. Diante desses e outros indicadores, propõe-se: 

PRIORIDADE 1
Dar melhor condição de trabalho a quem tem ou quer formar família

  • Facilitar o processo para formalização via Microempreendedor Individual (MEI);
  • Criar programas públicos e privados de returnship (retorno ao trabalho), com mentoria, treinamento e acompanhamento para mães que retornam ao mercado de trabalho e às empresas que as empregam; 
  • Disponibilizar banco de empregos para recolocação profissional de mães em situação de vulnerabilidade social e violência; 
  • Oferecer incentivos fiscais a em- presas para a contratação de pessoas que ficaram afastadas por longos períodos do mercado de trabalho para cuidar de algum parente ou familiar. É o que ocorre nos Estados Unidos com o programa Wax Opportunity Tax Credit; 
  • Consolidar o teletrabalho e incen- tivar a flexibilização de jornadas. 

PRIORIDADE 2
Proteção da renda familiar 

  • Restituir o Imposto de Bens e Serviços (IBS) para famílias de baixa renda. “Em resumo, mensalmente o cartão possuído pela pessoa habilitada é creditado pelo montante de IBS que ela pagou em compras realizadas no mês anterior. Para limitar o benefício a pessoas de baixa renda, deverá haver um limite de compras que geram crédito.” Entre as vantagens dessa medida estão o respeito à soberania do consumidor para a escolha do bem ou serviço; e o estímulo às compras em estabelecimentos da economia formal, favorecendo a inclusão tributária e contribuindo para a redução da informalidade; 
  • Elaborar e implementar um modelo de imposto de renda familiar a partir da técnica de splitting familiar, pelo qual se considera a configuração familiar (dependentes) para fins de base de cálculo. “Haverá um teto de limitação do benefício fiscal por dependente para garantir a progressividade e preservar a capacidade arrecadatória do Estado”; 
  • Incluir o tempo de cuidado materno no cálculo de aposentadoria da mulher. 

EIXO 2 – VÍNCULOS & EDUCAÇÃO 

É enfatizada a relação existente entre vínculos familiares enfraquecidos e problemas sociais como uso de drogas, evasão escolar, delinquência juvenil, violência doméstica e problemas de saúde mental. Também é apontado o impacto dos hábitos familiares para o tempo excessivo de exposição das crianças às telas e para o aumento dos indicadores de obesidade infantil (condição de 3,1 milhões de crianças com até 10 anos) e de subnutrição (há 5 milhões de crianças desnutridas no País). A partir dessas constatações, propõe-se: 

PRIORIDADE 3
Promoção da convivência familiar 

  • Promover programas de educação alimentar que envolvam as famílias e sua rede de apoio, contando com a contribuição da mídia, influenciadores digitais, órgãos públicos e privados, escolas e centros comunitários; 
  • Reduzir o tempo da exposição das crianças às telas. Para tal, no contraturno escolar, sugere-se que haja a oferta de aulas de esporte, dança, artes e afins; além disso, deve ser estimulada a produção de brinquedos e brincadeiras para serem usados na escola e em casa, bem como desafios e jogos que ocorram longe das telas; e programas de educação parental sobre a temática. 

PRIORIDADE 4
Prevenção de riscos a partir da família 

  • Fortalecer vínculos familiares e promover educação parental. Estima-se que os custos dessas ações seriam os mesmos de uma campanha de vacinação infantil, havendo resultados altamente positivos, como uma redução global de 10% nos gastos para combater os efeitos adversos de casos de violência na vida das crianças;
  • Que a partir da escola as famílias sejam envolvidas em programas de fortalecimento de vínculos familiares e prevenção de comportamentos violentos e uso de substâncias; 
  • Disponibilizar programas de desenvolvimento de habilidades socioemocionais nas escolas, bem como serviços de assistência social para prevenir a fragilização de vínculos familiares, além de promover o fortalecimento emocional de crianças e adolescentes; 
  • Ofertar programas de habilidades socioemocionais a adultos e casais, para que se diminua a incidência da violência doméstica; 
  • Disponibilizar programa de orientação afetiva para adolescentes, com o objetivo de reconhecer e prevenir padrões de violência dentro de um relacionamento;
  • Ofertar programas que aplicam técnica da ciência da prevenção, como o Communities that Care (CTC). “A fim de prevenir comportamentos problemáticos e promover o desenvolvimento saudável de jovens, este programa estrutura-se em cinco fases desenvolvidas e aplicadas dentro de comunidades (igrejas, centros comunitários, ONGs) ou escolas.” Ele já existe nos Estados Unidos. 

EIXO 3 – APOIO AO CUIDADO 

O relatório aponta que, no Brasil, tem ocorrido, concomitantemente, a diminuição da taxa de natalidade e o envelhecimento da população. Essa mudança na quantidade de idosos trará novos desafios às famílias, e o cenário mais difícil será para a “geração sanduíche”: os adultos em idade de trabalho, que precisam cuidar de seus filhos crianças e de seus pais idosos. “O objetivo deste investimento não é, de forma alguma, substituir as famílias na missão de cuidar: isso seria caro e ineficaz. Trata-se de reduzir e redistribuir as tarefas de cuidado sob responsabilidade das famílias por meio de serviços públicos e até mesmo de políticas privadas, como aquelas que promovem o equilíbrio trabalho-família”, conforme é explicado na agenda. 

PRIORIDADE 5
Ampliação da rede de apoio para cuidar de crianças 

  • Diante das dificuldades de oferta de serviços de apoio para famílias com crianças, uma das soluções é ampliar a quantidade de creches; 
  • Disponibilizar programas de desenvolvimento de habilidades socioemocionais nas escolas, incluindo oficinas e formação para pais e mães sobre o desenvolvimento dos filhos e fortalecimento de vínculos familiares; 
  • Ampliar a oferta de equipamentos públicos para lazer das famílias. “A gratuidade no ingresso de museus e shows para famílias de baixa renda em algum dia da semana ou do mês também pode ser uma proposta”; 
  • Diante da sobrecarga de tarefas domésticas e de cuidado que recaem sobre as mulheres, uma das soluções é garantir tempo adequado de licença-paternidade. Hoje tal licença é de 5 dias. “É razoável propor uma equiparação dos tempos de licenças-maternidade e paternidade, ou até mesmo a implementação de uma licença parental […] Dessa forma, uma alternativa pode ser propor a ampliação da licença-paternidade para 45 dias, que é o tempo que dura o puerpério – em média. Também se faz necessário que a remuneração da licença-paternidade fique a cargo da Previdência Social ou de estímulos fiscais, como aqueles propostos no Programa Empresa Cidadã. Hoje, os custos da licença-paternidade muitas vezes ficam a cargo da empresa”; 
  • Criar campanhas que incentivem maior participação masculina nas tarefas domésticas e de cuidado;
  • Promover a licença parental para maior tempo com filhos recém-nascidos ou adotados; 
  • Facilitar o acesso às licenças-paternidade e maternidade estendidas. 

PRIORIDADE 6
Garantia de cuidado adequado aos idosos 

  • Diante da carência de serviços públicos e privados para apoiar as famílias no cuidado das pessoas idosas, uma das soluções é implementar um modelo de cuidado multinível, o qual “incentiva a permanência de idosos nos níveis ‘leves’ – ou menos complexos – de cuidado. Esses níveis leves incluiriam a construção e disseminação de centros de convivência, centros-dia, atendimento domiciliar e treinamento e apoio para o cuidador familiar. São de menor custo e atuam no nível de prevenção. Já níveis mais complexos e avançados, como a construção de instituições de curta e longa duração, seriam necessárias apenas quando os níveis leves não conseguissem suprir demandas”;
  • Elaborar uma política nacional de cuidado baseada na comunidade, pela qual se preconiza a prevenção por meio de um suporte adequado oferecido pela família, sistema de saúde e assistência social e entorno (comunidade);
  • Implementar um fundo público de seguridade para o acesso ao cuidado, com vistas a assegurar “recursos econômicos às famílias que necessitam de suporte para o exercício do cuidado”;
  • Ampliar a oferta de cursos e formação para cuidadores, em especial os gratuitos de curta duração para familiares e cuidadores de idosos.

AGENDAMENTO DO TEMA NA SOCIEDADE 

Na conclusão da agenda, o Family Talks ressalta que a chamada crise do cuidado precisa ser enfrentada “como uma prioridade pelo governo e a sociedade, dado o papel central e fundamental do cuidado na vida das pessoas. Atualmente, as atividades de cuidado são habitualmente esquecidas pela opinião e ação pública, sendo relegadas ao ambiente doméstico, às famílias. Cada vez mais, elas precisam de apoio para exercer sua missão”. Também é enfatizado que “garantir apoio às famílias, especialmente por meio de ações para fortalecimento de vínculos familiares, tem o potencial de prevenir diversos problemas sociais com baixo custo de investimento”. 

À reportagem, Rodolfo Canonico explicou que os apontamentos feitos na agenda têm sido apresentados especialmente a políticos com cargos legislativos federais, e que se pretende que o conteúdo seja conhecido também pelos candidatos à Presidência da República e aos cargos legislativos. 

O diretor executivo de Family Talks disse que algumas das medidas propostas envolvem mudanças na legislação, como as questões do Imposto de Renda, no entanto outras podem ser implementadas diretamente pelos governos por meio de políticas públicas, mas que o grande desafio é o de que se destine verbas públicas para tal. 

“A ideia é que o Estado e a sociedade compartilhem as questões de cuidado que hoje estão somente com a família. Isso seria feito não para substituí-las, mas para dar condições melhores de cuidado. Isso traria um ganho de tempo para as famílias e ganhos econômicos obviamente, tanto pelo gasto que seria evitado quanto pelo tempo de qualidade que é necessário para cuidar de uma família, para desenvolver as relações familiares. Em síntese, o que estamos falando é garantir uma rede de apoio para as famílias, construída dentro de uma perspectiva solidária com a sociedade e governos, para gerar uma transformação bastante impactante”, concluiu Canonico. 

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