Via-Sacra da Criança e do Adolescente ecoa o drama da fome e o sofrimento do povo ianomâmi

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

A Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo realizou na sexta-feira, 31 de março, a Via-Sacra da Criança e do Adolescente pelas ruas do centro da capital paulista. 

Esse momento de oração foi idealizado há mais de 30 anos por lideranças desta Pastoral e por Dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006), quando era Bispo Auxiliar de São Paulo.

A atividade reúne crianças e adolescentes de projetos sociais e de colégios católicos para reviver a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo pelas ruas do centro da cidade.

É também um momento de denúncia das formas de injustiça, opressão e sofrimento que ferem a dignidade humana, em especial, das crianças e dos adolescentes.

Neste ano, além de destacar a Campanha da Fraternidade (CF) 2023 – cujo tema é “Fraternidade e Fome” e lema “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16), a Via-Sacra enfatizou o sofrimento do povo indígena Yanomami.

A fome não é algo distante

Na abertura da atividade, o Cardeal Odilo Pedro Scherer ressaltou que “talvez, alguns de nós não sintamos fome, aquela fome constante de não ter a comida suficiente a cada dia, mas isso existe”.

O Arcebispo Metropolitano de São Paulo lembrou que há pessoas passando fome, inclusive, na capital paulista e que o centro da cidade concentra uma grande população que vive em situação de rua, dependendo de outras pessoas para se alimentar. 

“Há gente passando fome no meio de nós e nas periferias de nossa grande cidade. Existe muita gente ainda com alimento insuficiente, com uma alimentação que não é adequada para manter a saúde’, enfatizou Dom Odilo.

O Arcebispo mencionou o sofrimento dos povos indígenas, ao recordar a morte das 570 crianças Yanomami em decorrência da subnutrição e da fome. “Queremos ter esses dois temas – fome e Povo Yanomami – presentes na Via-Sacra que começa aqui, uma manifestação pública das crianças e dos adolescentes, mas é um grito que vai para toda a cidade. Queremos um mundo sem fome”, ressaltou.

Dom Odilo disse ainda que “é preciso ser solidário com quem passa fome. Ser sensível à sua dor, aos seus sofrimentos e as suas angústias”.

“Por isso estamos aqui, recordando a Paixão de Jesus que disse ‘em cada um desses irmãos, Eu mesmo estou passando fome. Em cada um desses irmãos doentes, Eu mesmo estou doente. Em cada um dos meus irmãos desrespeitados, Eu mesmo estou sendo desrespeitado’”, concluiu.

Retorno às ruas 

Segundo a organização, cerca de 1,5 mil pessoas, a maioria crianças e adolescentes, participaram da Via-Sacra, que neste ano retornou ao presencial, após realizar três edições no modo on-line, em decorrência da pandemia da COVID-19.

“No presencial, sentimos que somos um corpo. Temos uma cabeça que é o Cristo. É Ele que nos orienta e direciona. O Seu caminho é o caminho de vida e quando caminhamos juntos, nos sentimos mais fortes”, disse, ao O SÃO PAULO, Dom Carlos Silva, OFMCap., Bispo Auxiliar de São Paulo e Referencial da Pastoral do Menor, enquanto caminhava entre a multidão em procissão.

Classificando a fome como uma realidade inconcebível, Dom Carlos destacou que “caminhando vamos criando a consciência que nós, também, somos responsáveis [por combater a fome], como lembra nosso Senhor: ‘dai-lhes vós mesmos de comer’”. Ele também frisou que em conjunto será possível “buscar soluções e ir mais longe na defesa da vida, da verdade e contra a fome”.

Também na procissão estava Sueli Camargo, coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor: “Depois de tudo que sofremos com a COVID-19, muitas das nossas crianças estão voltando aos projetos com a realidade de orfandade, estarmos, hoje, ocupando as ruas de São Paulo para testemunhar Jesus Cristo é comovente”, expôs Sueli. 

Emoção que ficou visível também entre as pessoas em situação de rua presentes no percurso da procissão e nas que transitavam pela região ou ocupavam os prédios do entorno. Muitos rezaram juntos e acenaram para as crianças, outros registraram o momento com o celular.

“Anunciamos um Cristo ressuscitado e denunciamos o extermínio dos nossos povos originários, das 570 crianças vítimas que morreram pela contaminação das águas, pelo desmatamento, pelo descaso do poder público. São crianças e adolescentes rezando pelas vítimas Yanomami”, completou Sueli.

Conscientização, fé e esperança

Daniela dos Santos, 16, estudante da unidade Santa Úrsula do Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo (Cedesp) foi à Via-Sacra pela primeira vez. “É muito bom. Acredito que seja um movimento muito necessário para abrir os olhos das pessoas. E não só dos estudantes, mas também para a sociedade em geral”, comentou. 

Mariane Araújo, 25, é educadora do CCA – São Pedro, que levou à Via-Sacra 35 alunos com idades entre 6 e 14 anos. Para ela, além de ser uma ocasião para protesto por direitos, é também um momento de fé e esperança. “O tempo da pandemia roubou muito isso de nós. Estar com as crianças representa a esperança de tempos melhores”. 

Via-Sacra

Para meditar a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo foram realizadas cinco Estações, nos principais pontos do centro da capital: Escadaria da Catedral da Sé, que foi o ponto de partida e de encerramento da atividade; Pateo do Collegio; Praça do Patriarca e Largo São Francisco. 

Em cada ponto, a procissão era acolhida pelo padre responsável pelo local e conduzida a momentos de reflexão por meio da encenação da história do Senhor, organizada por membros pastorais de diferentes regiões episcopais.

De forma lúdica, as crianças e os adolescentes em procissão trouxeram para a Via-Sacra símbolos para chamar atenção para o tema da fome, como pratos vazios, além de faixas pretas nos braços em luto pelas crianças indígenas. 

O cenário altíssimo de pobreza, presente no centro, também contribuiu com a reflexão. 

“Na segunda Estação, quando Jesus encontra Cirineu, o papel dele era isso. Ver a nossa realidade na sociedade do dia de hoje, lutar por políticas públicas que, infelizmente, ainda são poucas e desapropriadas as que têm, pois não respondem à realidade”, pontuou Sueli. 

“A realidade da fome não está só na tribo indígena distante dos nossos olhos. Está aqui no nosso dia a dia. A fome e a violência do descaso na região central é o retrato que deparamos no dia a dia”, acrescentou.

Após a Via-Sacra, crianças indígenas Guarani, da Aldeia Jaraguá, apresentaram uma canção. 

“Essa cidade subiu derrubando as florestas e os povos indígenas. Quem olha esses prédios não enxerga o que está embaixo. Trouxemos as crianças para cantar e dizer claramente que o povo Guarani é dono dessa cidade e tem direito de ter o seu lugar”, disse Antônio Salvador, membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

ANÁLISE

A Sagrada Face é Yanomami

Wagner Balera

A comovente Via-Sacra da Pastoral do Menor, realizada há poucos dias pelas ruas do centro da cidade de São Paulo, nos revela um significativo flash de como terá sido, ao longo do tempo, esse momento único de piedade.

Como se sabe, a Via-Sacra revela os passos da caminhada que Jesus percorre desde o tribunal de Pilatos até o cume do Monte Calvário, no qual será crucificado e morto. 

É o itinerário que demarca uma parte da Sexta-Feira Santa.

Como que acompanhando os passos de Jesus, vamos recordando os sofrimentos Dele e do povo que, ao longo dos séculos, é igualmente crucificado junto com Ele. 

São três as quedas que, sob o peso da cruz, Jesus sofre ao longo do caminho. E nós, a cada uma delas, podemos meditar sobre nossas muitas quedas. Quais são os pesos que mais nos oprimem: a carne, os olhos, a soberba. Naturalmente, não são só três as quedas. Tudo é simbólico e provoca, exorta, a reflexão.

É o encontro com alguém que, talvez até sem que o deseje, nos ajuda a carregar a nossa cruz, cujo peso somos incapazes de suportar. Quantas vezes nos dispusemos a apoiar alguém no meio de sua caminhada?

Pois bem. Aqui vamos nos deter num desses passos, tal como é descrito pela tradição multissecular desse dia.

No sexto, passo uma mulher surge, por assim dizer, do nada. Do meio da multidão, ela sai correndo, vence a barreira daqueles que o cercam e, com uma toalha, presta um serviço de caridade a Jesus, enxugando a Face conspurcada pelo sangue, pelo suor, pelas lágrimas, pelos escarros e pela poeira das ruas.

O que acontece, então?

Jesus quer perpetuar o agradecimento a esse gesto de caridade. 

Não nos esqueçamos disso. Tudo o que fazemos por amor, até mesmo um copo d´água que damos a alguém recebe a gratidão de Jesus. É a Ele que estamos dando a água…

Para assinalar a gratidão, Jesus demarca sua Face na toalha com a qual a mulher acabara de lhe prestar esse gesto tão amoroso. 

Reparemos agora no semblante registrado na toalha. 

Como nenhum de nós jamais viu a Face de Jesus, em seus verdadeiros contornos, somente com os olhos da fé ela se nos entremostra. 

É assim, igualmente, com a toalha.
 
Cada um de nós assemelhará na face de Jesus o rosto daquele que, ao longo da vida, mais achamos parecido com Ele. 

E nosso coração terá repetido as palavras com que Santa Teresinha (Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face) se dirigia a Ele: digna-te imprimir em mim tua Divina Semelhança.

E  Verônica, como chamam  a essa mulher, mostrou para os demais a Face adorável de Jesus tal como a ela se apresentara. 

O rosto que ela vira fora deformado pelo sofrimento, como assinala Isaías.

Portanto, não se tratava de algo formoso, de uma pintura como retratada pelos séculos afora pelos artistas plásticos.

Não haveria ninguém, no entanto, que não reconhecesse aquela Face. Reverberava dela a expressão de gratidão, de comoção, com que Aquele a quem foi realizado o amoroso gesto de caridade, quer retribuir, deixando impresso, para sempre, no mais íntimo do ser, o favor tão pequeno que lhe fora prestado.

Pois bem. O nome Veronica quer dizer ver ônica, isto é, verdadeiro ícone. Trata-se, com efeito, de mera lembrança da toalha. Não há registro, na tradição, do nome civil da mulher que tanto agradou a Jesus. Ela será, sempre que esse momento for recordado até o final dos tempos, uma das pessoas que apoia Jesus.

O verdadeiro ícone, como quis retratá-lo a Via-Sacra da Pastoral da Criança, é a face sofrida de Jesus que se expressa no povo Yanomami. 

Eu ouvi os clamores do meu povo, por causa dos seus opressores, diz o Livro do Êxodo, e desci a fim de libertá-lo das mãos do opressor, para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel.

Eis o que o povo Yanomami e todos os oprimidos, os marginalizados, as crianças, os adolescentes, os que passam fome, os que perambulam pelas ruas sem nem mesmo um lugar para repousarem a cabeça esperam de nós nessa Via, que é, na feliz denominação da Imitação de Cristo, a Estrada Real da Santa Cruz.

Na região central da mais pujante cidade do Brasil, distantes e próximas dos Yanomamis, as pessoas em situação de rua pedem o copo d´água que se lhes recusam com frequência diária.

Naquela Via-Sacra, fora instalado imponente caminhão-pipa para saciar a sede do povo de rua. Mas, se você passar por lá hoje – na Praça da Sé – constatará que o caminhão já foi embora…

Agora, o clamor do povo chegou até Ele; e, com o clamor, a exigência, tanto do povo Yanomami – que quer, que exige, o direito de fruir em plenitude da terra que lhe pertence desde muito antes da chegada daqueles que “descobriram” a Terra da Santa Cruz – , como das crianças, do povo em situação de rua, e dos excluídos em geral, é para que o gesto simbólico da Verônica se concretize em propostas e programas de verdadeira e própria inclusão social.

Que assim se mostre, para nós, a verdadeira Face de Jesus.

Wagner Balera
Coordenador do Núcleo de Estudos de Doutrina Social, Faculdade de Direito da PUC-SP
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