O Arcebispo e as obras de misericórdia em favor do próximo

Ao longo dos quase 28 anos em que esteve à frente da maior Arquidiocese do Brasil, Dom Paulo Evaristo Arns testemunhou a fé por meio das obras de misericórdia – dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, de vestir a quem está nu, de cuidar de quem está doente, de visitar quem está encarcerado, entre outras obras corporais e espirituais (cf. Mt 25,34-40).

A seguir, estão algumas das iniciativas conduzidas pelo “Cardeal da Esperança”, com apoio dos leigos, padres, religiosos e bispos auxiliares.

Ao lado dos bispos auxiliares e do Padre Júlio Lancellotti, Dom Paulo Evaristo abençoa e inaugura a Casa de Oração do Povo da Rua em 1997 (foto: Douglas Mansur/Arquivo O SÃO PAULO)

Atenção aos ‘irmãos da rua’

Era noite de Natal e Dom Paulo recebeu o pedido para que permitisse que algumas pessoas em situação de rua participassem da vigília. “Na hora do sermão, pensei que o Menino Jesus precisava de um lugar decente para morar entre nós. Num impulso, que foi certamente obra do Espírito Santo, criei, naquele momento, em conversa com o concelebrante [Padre Júlio Lancellotti], o Vicariato do Povo da Rua”, escreveu o Cardeal da Esperança na obra “D. Paulo Evaristo Arns – Da Esperança à Utopia”, editora Sextante.

O Vicariato iniciou suas atividades em 1993. No ano seguinte, ouvindo o pedido dos “irmãos da rua”, Dom Paulo decidiu construir a Casa de Oração do Povo da Rua, no bairro da Luz. Para tal, usou os 190 mil dólares que recebera da fundação japonesa Niwano, em prêmio concedido àqueles que atuam pela paz na sociedade.

“Dentro de poucos anos, o Deus da misericórdia que, espero, seja complacente comigo, inevitavelmente me fará esta pergunta: ‘Estive nu em São Paulo e você não me cedeu senão o Palácio Episcopal? Não vai me dar agora o dinheiro recebido pelo prêmio da paz?”, escreve o Arcebispo no referido livro.

A Casa de Oração do Povo da Rua foi inaugurada em 28 de junho de 1997 e ainda hoje realiza atividades de evangelização, distribui refeições e roupas aos “irmãos da rua” e, em situações emergenciais, como na onda de frio registrada em julho deste ano, também é aberta às pessoas que não têm onde pernoitar.

Justiça e paz

Diante dos crescentes registros de violações aos direitos que muitas pesso- as sofreram ao longo do regime ditato- rial no Brasil, Dom Paulo Evaristo criou, em 1972, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJPSP).

O organismo teve entre seus funda- dores o jurista Dalmo Dallari – que foi o primeiro a presidi-lo, Fábio Konder Com- parato, José Carlos Dias, Marco Antonio Barbosa, Antonio Funari Filho e Margari- da Genevois.

Inicialmente, as reuniões aconteciam na casa de Dom Paulo, onde se colhiam informações e depoimentos das vítimas da ditadura. Não raras vezes, o Arcebispo ia a Brasília (DF) para falar com autori- dades militares e civis, visitava presídios para apurar denúncias de torturas, exigia medidas do governo, em especial diante de casos de prisões arbitrárias, torturas e o sumiço de pessoas.

“Dezenas, senão centenas e milhares de brasileiros foram preservados da tortu- ra e mesmo da morte por causa da ação decidida e corajosa de todos os membros dessa comissão valorosa que Deus susci- tou no momento mais decisivo de nossa reação contra o regime totalitário”, escre- veu Dom Paulo.

NOS CÁRCERES

Dom Paulo e membros da Comissão Justiça e Paz (foto: Arquivo pessoal)

Na Arquidiocese de São Paulo, o Cardeal Arns estruturou os trabalhos de evangelização da Igreja nas prisões, algo que ocorria desde os anos 1960, mas que foi sistematizado como Pastoral Carcerária a partir de 1985.

Desde quando era Bispo Auxiliar da Arquidiocese (1966-1970), Dom Paulo visitava regularmente a Casa de Detenção e a Penitenciária Feminina, no bairro do Carandiru. “Habituei-me de tal maneira às visitas à penitenciária, que todas as semanas eu me oferecia para celebrar a eucaristia com as irmãs encarregadas do presídio feminino e comparecia ao menos uma vez por mês para visitar os presos, participar da Legião de Maria que ali funcionava e até para cortar o cabelo e engraxar os sapatos”, conta em sua biografia.

Na época do regime ditatorial, as visitas do Arcebispo aos cárceres se tornaram mais frequentes para averiguar se os direitos dos que estavam presos por supostos crimes políticos estavam sendo respeita- dos. “Quando Cristo me perguntar: ‘Estive preso, você me visitou?’ – espero que me perdoe todas as omissões nessa área de sofrimentos indizíveis, porque não só os visitei, mas estive preso com eles, unido pela mais irrestrita solidariedade”, escreve em sua biografia.

Centro Santo Dias de Direitos Humanos

No fim dos anos 1970, eram recorrentes os relatos de violência policial, especialmente contra a população mais pobre. Uma dessas ações resultou na morte do operário Santo Dias, em 1979, e foi o estopim para que se organizasse por parte da Igreja uma ação mais coordenada para a defesa dos direitos humanos.

Assim, no segundo semestre de 1980, Dom Paulo inaugurou o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, que depois recebe- ria o nome de Santo Dias, tendo como primeiro coordenador o jurista Hélio Bicudo. Os trabalhos se concentravam na assistência jurídica às vítimas e no encaminha- mento das denúncias de violência policial, além da capacitação do povo, por meio de publicações e palestras, para que conhecessem os próprios direitos e soubessem como denunciar violações.

“O Centro Santo Dias nos incentivou a criar uma série de pastorais que defendiam os direitos humanos em outros campos, como da moradia, do salário justo e das greves para casos extremos”, conta Dom Paulo no já referido livro.

Em defesa das vidas mais fragilizadas

Na Arquidiocese de São Paulo, Dom Paulo apoiou e iniciou muitos trabalhos de atenção pastoral e caritativa em favor das vidas mais fragilizadas.

Ele estimulou, por exemplo, a formação da Pastoral dos Enfermos (atual Pastoral da Saúde) em 1975; em meio à expansão de casos do HIV no País, criou a Casa Vida, em 1991, para amparo às crianças soropositivas; e, em 1994, estimulou que se formasse a capelania do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.

Dom Paulo também deu todo o suporte para que se iniciasse, em 1977, a Pastoral do Menor e foi o grande articulador para a formação da Pastoral da Criança, após um encontro que teve, em 1982, com o diretor executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Essa pastoral seria iniciada no ano seguinte, liderada por sua irmã, a médica pediatra Zilda Arns Neumann. Ao longo de seu episcopado, motivou as ações do Amparo Maternal, criado em 1939 para o atendimento a gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade social. Dom Paulo obteve doações no exterior para que os atendimentos não fossem encerrados, e já como Arcebispo Emérito, no começo dos anos 2000, doou R$ 30 mil para que a instituição mantivesse suas atividades.

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