Constatação está na 16ª edição do Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo, realizado pela Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN)
“Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”.
O que se prevê no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos vem sendo desrespeitado de modo grave ou gravíssimo em 61 países, conforme revela a 16ª edição do Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo, publicado pela fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN).
O estudo, que abrange o período de janeiro de 2021 a dezembro de 2022, foi feito em 196 países e sinaliza que a perseguição das pessoas em razão da fé piorou em 47 deles no comparativo com o relatório anterior.
Atualmente, cerca de 4,9 bilhões de pessoas (62,5% da população mundial) vive em países com violações graves ou gravíssimas à liberdade religiosa, as quais têm raiz especialmente no nacionalismo étnico-religioso, no extremismo islamista e nas ações de governos autoritários (leia detalhes no gráfico).
O relatório lista os quatro tipos de violações da liberdade religiosa e de crença: a intolerância em razão da religião que se professa; a discriminação (quando há leis ou normas que se aplicam a um grupo específico e não a todos); a perseguição (com registros de atos violentos, ocorridos isoladamente ou de modo sistemático); e o genocídio (quando os atos cometidos têm a intenção de destruir um grupo específico).
PREOCUPAÇÃO CRESCENTE COM A ÁFRICA
Dos 28 países considerados como os lugares mais perigosos do mundo para a livre prática da religião, 13 estão na África, continente que tem sofrido especialmente com o aumento dos ataques dos extremistas islâmicos jihadistas.
O relatório informa que as redes jihadistas que antes buscavam conquistar e defender territórios fixos no continente agora têm feito ataques rápidos para estabelecer comunidades isoladas, em zonas rurais mal defendidas e com abundância de recursos minerais. Nesses locais, os extremistas estabelecem impostos à população e realizam comércios ilegais, formando uma espécie de Estado paralelo ao oficial.
Atual Bispo de Cachoeiro do Itapemirim (ES), Dom Luiz Fernando Lisboa foi Bispo da Diocese de Pemba, em Moçambique, entre 2013 e 2021. No evento do lançamento do relatório da ACN, na sexta-feira, 23, em São Paulo, o Prelado recordou que desde 2017 aquele país tem vivido uma situação de guerra fomentada por grupos terroristas que instrumentalizam a fé islâmica, e que já resultou em cerca de 1 milhão de deslocados internos, os quais têm encontrado na Igreja Católica uma mão estendida para receber alimentos, abrigos provisórios e até atendimento psicológico.
“A causa principal para estes conflitos é busca pelos recursos naturais que são abundantes na África. Onde eu estava, na Província de Cabo Delgado, existe a maior reserva de gás natural da África, e há ouro, rubi, grafite. A perseguição religiosa vem aliada a isso ou como consequência disso. Há, sim, grupos extremistas que perseguem cristãos na África, mas há lugares, como em Moçambique, que a motivação da guerra não é religiosa, mas por causa dos recursos, que são cobiçados por multinacionais. Grupos radicais usam o nome do Islamismo, mas seu verdadeiro objetivo é financeiro, e os próprios muçulmanos moçambicanos negam que essas pessoas sejam lideranças religiosas, consideram-nas como bandidos. Portanto, o extremismo religioso existe, mas não pode servir como capa para as verdadeiras razões das guerras que são econômicas”, disse o Bispo ao O SÃO PAULO.
O SILÊNCIO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL
O relatório aponta ainda que tem aumentado o poder e o alcance de governos autoritários e líderes fundamentalistas, os quais se sentem incomodados com a autoridade espiritual e a capacidade de mobilização das comunidades religiosas, e passam a persegui-las.
Na avaliação da ACN, o silêncio da comunidade internacional contribui com uma cultura de impunidade, uma vez que países considerados estrategicamente importantes para o Ocidente, como a China e Índia, não têm sofrido qualquer tipo de sanções internacionais ou outras consequências por violarem o direito à liberdade religiosa.
“No caso da China, há a perseguição promovida pelo próprio governo, que não é apenas contra as minorias, como os cristãos, mas, também, contra o povo uigures. Existem até os ‘campos de reeducação’ a estes uigures, que são mulçumanos. Já no caso da Índia, o que há é um nacionalismo extremado, com o entendimento de que a Índia é apenas para os hindus, e existem leis anticonversão. Nesse país, os muçulmanos que perfazem de 10% a 15% da população – é um contingente de milhões de pessoas – são tão perseguidos quanto nós, cristãos. E essa situação se alastrou. No Sri Lanka, vemos o caso dos refugiados Rohingyas, uma etnia muçulmana, perseguida em Myanmar, um país budista”, explicou à reportagem Valter Callegari, diretor executivo da ACN Brasil.
Callegari comentou que a ACN tem levado bispos, padres e religiosos a eventos do Parlamento Europeu para que testemunhem as realidades que vivem em seus países. “Temos buscado cobrar das autoridades algum tipo de condenação onde ocorre essa ausência de liberdade religiosa e a perseguição religiosa”, ressaltou.
DA PERSEGUIÇÃO OSTENSIVA AO CANCELAMENTO CULTURAL
Nas mais de 600 páginas do relatório, é possível atestar as múltiplas facetas da perseguição religiosa pelo mundo.
Em alguns países, como a Turquia e Síria, há uma danosa combinação de ataques terroristas e destruição de patrimônios e símbolos religiosos. Na Nigéria, a perseguição religiosa tem destruído comunidades inteiras e 28 sacerdotes foram assassinados em 2022; no Sudeste Asiático e no Oriente Médio têm proliferado as leis anticonversão e as restrições financeiras aos grupos perseguidos. No Paquistão, meninas e jovens cristãs e hindus são muitas vezes sequestradas e sujeitas a casamentos forçados, situação que é ignorada pelas autoridades locais. E na América Latina, houve o aumento de ataques a líderes religiosos, seja por parte de grupos criminosos, seja pelo próprio governo local, como se verificou na Nicarágua e na Venezuela.
Outro alerta do relatório é que no Ocidente tem avançado a “cultura do cancelamento”, ou seja, nos últimos dois anos se passou de um clima de “perseguição educada” àqueles que querem abertamente expressar sua fé para um clima de “cancelamento cultural” e “discurso forçado”, com forte pressão social para que essas pessoas se conformem com as correntes ideológicas predominantes.
Dois apontamentos positivos são feitos no documento: o aumento das iniciativas de diálogo inter-religioso em diferentes partes do planeta e o retorno das celebrações religiosas sem restrições após os bloqueios durante o período da COVID-19.