Em recente coletiva de imprensa, o Arcebispo de Homs ofereceu um panorama da situação do país do Oriente Médio sob o novo governo

A história recente da Síria é permeada de circunstâncias que inspiram reflexões sobre o futuro do Cristianismo em uma nação de maioria muçulmana. Palco de uma guerra civil que se iniciou em 2011 e se estendeu até a queda do regime ditatorial de Bashar al-Assad, ex-presidente deposto no fim de 2024, o país viu o número de cristãos passar de 1,5 milhão de fiéis – antes dos conflitos – para cerca de 200 mil hoje.
O atual governo é composto de lideranças salafistas, um movimento islâmico sunita que se caracteriza por uma interpretação literal e fundamentalista do Alcorão e da Sunna (práticas e ensinamentos do profeta Maomé), buscando a restauração da prática religiosa considerada “pura” dos primeiros muçulmanos.
Entre 2011 e 2022, no contexto de inúmeras necessidades decorrentes das constantes disputas internas, a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) apoiou mais de 1,1 mil projetos no país, entre ajuda emergencial, remédios, alimentos, abrigos e iniciativas educacionais, os quais demandaram um montante de mais de 50 milhões de euros.
Na terça-feira, 3, a ACN promoveu uma coletiva de imprensa on-line com Dom Jacques Mourad, Arcebispo Siríaco-Católico de Homs, na Síria. Nascido em Aleppo, cidade-símbolo da era da guerra civil, sua formação eclesiástica se deu no Líbano e o levou a se tornar monge e padre e a integrar uma comunidade que busca ampliar a paz por meio do diálogo entre cristãos e muçulmanos.
O SÃO PAULO acompanhou a coletiva de imprensa e traz os principais trechos a seguir.
SITUAÇÃO ATUAL

“A situação na Síria continua sendo de extrema pobreza e incerteza”, afirmou Dom Jacques. Segundo ele, a recente substituição do regime de Bashar al-Assad por um regime com raízes muçulmanas fundamentalistas gerou desconfiança entre os diferentes grupos étnicos e religiosos do país.
“O povo da Síria vive sem dignidade e sem confiança mútua, no governo e na comunidade internacional. Isso se tornou um peso enorme sobre os ombros das pessoas”, sublinhou. Embora o governo tenha feito muitos gestos conciliatórios com a comunidade cristã e outras minorias religiosas, a presença nas ruas de milícias salafistas fortemente armadas deixa muitos inquietos.
“Para o povo sírio, é estranho. É estranho a eles e às suas tradições; eles nunca foram confrontados por uma forma tão rígida do Islamismo e há um certo desconforto social diante do que vem acontecendo”, destacou o Prelado.
Segundo ele, até mesmo os sunitas – a vertente religiosa muçulmana majoritária na Síria – desconfiam dos militantes que vagam pelas ruas. “Na história da Síria, nunca houve apenas uma religião, sempre houve diversidade. Este é um lugar de encontros, em que todas as civilizações e religiões se encontram. Nossos vizinhos sunitas nos dizem que não estão felizes com este novo regime, e dizem isso aos outros, mas entre eles há medo, porque para os salafistas, se os sunitas não estiverem na mesma página, são considerados blasfemadores e a consequência da blasfêmia é a morte”, explicou.
CLIMA INTERNO
Apesar do clima pesado, o Arcebispo mencionou que não se pode dizer que os cristãos estejam sendo perseguidos neste momento na Síria. Em vez disso, afirma ele, o fato de a aplicação regional das regras fundamentalistas ser diferente leva a um sentimento de insegurança.
“O país está um caos porque não há normas comuns. Por exemplo, no verão, costumamos levar nossos jovens para acampamentos perto da costa, mas este ano não vamos fazer isso, pois estamos preocupados com a reação das novas autoridades nessas áreas, pois, para elas, a mistura de sexos não é considerada normal, embora para nós seja. No entanto, por outro lado, em maio, realizamos, sem problemas, nossas tradicionais procissões de rua em homenagem a Nossa Senhora”.
ÊXODO E ESPERANÇA
Diante dessa realidade, muitos cristãos continuam tentando deixar o país. Enquanto antes eram principalmente jovens homens que tentavam fugir para o exterior para evitar o serviço militar, Dom Jacques assegurou que agora são as famílias que não querem que seus filhos pequenos cresçam em um local em que as ruas são patrulhadas por milícias salafistas. No entanto, ele sustentou que há esperança no horizonte, em um momento em que se fala em suspender as sanções que paralisam a economia síria há mais de uma década.
“As sanções tiveram um efeito terrível sobre o povo da Síria. Após a mudança de regime, a maioria das pessoas perdeu o emprego e agora não tem meios de sobrevivência. Todos os dias, as pessoas vêm até mim em busca de dinheiro para comprar pão. Este é o nível que atingimos. A maioria delas não tem o suficiente para pagar o aquecimento domiciliar. Ficou muito caro.”
“Se a decisão de remover as sanções for levada adiante, haverá trabalho, possibilidade de mudar e melhorar os meios de subsistência, oportunidades e, com sorte, as pessoas voltarão a receber salários”, afirma o Arcebispo, que acredita que, com melhores oportunidades econômicas, o apetite por violência e vingança diminuirá, levando a um futuro mais brilhante para todos.
PRESENÇA DA IGREJA

Enquanto isso, detalhou o Bispo, a Igreja continua sendo uma das poucas fontes de esperança para muitos cristãos e outros sírios que se beneficiam da ajuda. “Em nome de todos os sírios, e especialmente dos cristãos, somos extremamente gratos à ACN e seus benfeitores por nos ajudarem a ajudar os sírios a sobreviver neste momento de fome, sede e falta de tudo.”
“Agora é hora de olhar para o futuro”, e sua visão inclui uma Igreja trabalhando para melhorar a Síria. “Sentimos a responsabilidade de construir um futuro para o nosso país. Queremos participar disso.”
NECESSIDADES E OTIMISMO
Em relação às necessidades específicas dos cristãos, Dom Jacques Mourad aponta para a construção de casas, hospitais e escolas. “Acredito que a Igreja precisa participar disso, e a melhor maneira é organizar e apoiar grandes projetos que possam dar emprego, trabalho e coragem aos cristãos. Ajudar jovens cristãos que desejam se casar, sustentar e encorajar famílias, apoiar hospitais e escolas para as comunidades cristãs e encorajar aqueles que partiram a retornar, porque se virem oportunidades de trabalho, isso pode incentivá-los a retornar.”
O otimismo do Arcebispo diante de desafios assustadores está, explicou ele, enraizado em sua própria história pessoal. Em 2015, ainda como monge, viveu na pele o drama que atingiu muitos de seus compatriotas: foi sequestrado pelo Estado Islâmico, torturado, ameaçado de morte e mantido preso por cinco meses antes de recuperar a liberdade e perdoar a seus captores.
Com essa experiência, ele frisou não temer o que o futuro possa reservar na Síria. “Para alguém como eu, que experimentou a liberdade interior por causa do meu cativeiro, não há nada agora que me aprisione. Nada me coloca em estado de vulnerabilidade. Contemplo minha vida e vejo que ela está nas mãos de Deus, e tenho certeza de que Ele está me guiando. Aquele que fez esse milagre por mim e me deu o milagre de me devolver a liberdade permanece ao meu lado. Vejo isso para mim e para todos, inclusive para a presença dos cristãos e da Igreja na Síria.”