Gallagher: que a guerra acabe, mesmo que não como Zelensky ou Putin imaginam

De Liechtenstein, onde está de visita, o Secretário para as Relações com os Estados e as Organizações Internacionais ilustra a ação da Santa Sé na mediação de conflitos e denuncia uma profunda crise no sistema multilateral e nas grandes organizações, em particular na ONU, e convida a comunidade internacional a recuperar o “espírito de Helsinque”: a diplomacia do Vaticano é a diplomacia da reconciliação em oposição à diplomacia das reivindicações partidárias

Dom Paul Richard Gallagher discursa em Vaduz, Liechtenstein, durante a Conferência “Diplomacia e Evangelho” 

Todos nós temos fome de paz e essa paz não pode ser alcançada se não percorrermos os caminhos da reconciliação. Foi o que expressou o Arcebispo Paul Richard Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados e as Organizações Internacionais, em seu discurso “Diplomacia e Evangelho”, pronunciado em Liechtenstein, em sua visita nos dias 24 e 25 de abril, durante a conferência “Diplomacia e Evangelho”, na prefeitura da capital Vaduz. 

A ameaça de guerra na Europa, nada pode ser dado como certo

Em sua ampla contribuição, Dom Gallagher fala da diplomacia papal inspirada no Evangelho e, portanto, sempre a favor da paz e da dignidade humana, com a misericórdia como fio condutor. As preocupações com a guerra na Ucrânia são inevitavelmente lembradas várias vezes em suas palavras: “Agora que a Europa também sente a ameaça à paz mais do que nunca, sendo ferida pela trágica guerra de agressão da Rússia contra a martirizada terra ucraniana, nada mais pode ser dado como certo”, observa o prelado. Ele se refere ao ensino constante do Evangelho que educa como nenhum outro, à arte do movimento em direção à paz, “tirando”, por assim dizer, pessoas, nações, povos da espiral da guerra, do rancor e do ódio, para levá-los ao caminho do diálogo e da busca do bem comum.  

Ainda não há vislumbres de uma mediação de paz entre a Rússia e a Ucrânia

O representante do Vaticano insiste em enfatizar que “a diplomacia papal não tem interesses de poder: nem políticos, nem econômicos, nem ideológicos”. Porque, ele ressalta, não se trata de uma diplomacia como a dos Estados individuais, que cuidam de seus próprios interesses, mas se preocupam em promover o bem comum. A Santa Sé pode, portanto, representar “com maior liberdade para cada um as razões dos outros e denunciar a cada um os riscos que uma visão autorreferencial pode acarretar para todos”. Em virtude disso, além disso, na situação de emergência da pandemia ou do próprio conflito na Ucrânia, o Papa Francisco é considerado mais do que nunca pelos grandes do mundo como uma autoridade moral e um ponto de referência notável, tanto que invocam a sua intervenção e mediação: de fato, reconhecem a sua vocação de Pontífice, de ponte, para superar barreiras de outra forma intransponíveis. Infelizmente”, observa Gallagher, “apesar de todos os esforços do Santo Padre e da Santa Sé, ainda não se abriu um vislumbre útil de esperança para facilitar uma mediação de paz entre a Rússia e a Ucrânia.

Diplomacia pontifícia e respeito aos direitos humanos

Diante de uma tipologia variada de guerras (guerras diretas – como a da Ucrânia – guerras por procuração, guerras civis, guerras híbridas, guerras apenas congeladas e adiadas, que logo se tornam conflitos transnacionais), Dom Gallagher especifica as razões para o que parecem ser falhas na atividade diplomática. “Às vezes”, explica ele, “a situação geopolítica é tão diferenciada e polarizada, cheia de rupturas de todos os laços, que qualquer reajuste se torna extremamente difícil”. Não podemos nos esquecer, então, que muitas vezes é o fluxo de dinheiro e armas que sustenta e alimenta os conflitos. Como é possível”, pergunta ele, “exigir um comportamento correto, se as partes em conflito continuam a ser abastecidas com armas? A esse respeito, “a Santa Sé apóia uma diplomacia que deve redescobrir seu papel de portadora da solidariedade entre pessoas e povos como alternativa às armas, à violência e ao terror. Uma diplomacia que se torne portadora do diálogo, da cooperação e da reconciliação, que tomam o lugar das reivindicações mútuas, das oposições fratricidas, da ideia de perceber os outros como inimigos ou de rejeitar totalmente o outro”.

Retornando aos fundamentos da Declaração Universal de 75 anos atrás

O desafio, diz o prelado, é sempre contribuir para um melhor entendimento mútuo entre aqueles que correm o risco de se apresentar como dois polos opostos. E, acrescenta, a universidade é um lugar privilegiado para desenvolver uma cultura de paz. A poucos meses do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro), Gallagher nos lembra que a Igreja está na vanguarda dos esforços, não apenas para o respeito dos direitos humanos “políticos e civis”, mas também dos direitos “econômicos, sociais e culturais” que são simultaneamente afirmados na Declaração Universal acima mencionada. Em um mundo onde as violações dos direitos humanos são frequentemente persistentes e graves, a Igreja pede o reconhecimento da interdependência dos povos como um pré-requisito para um espírito de fraternidade. Se isso fosse plenamente realizado, o patrimônio dos direitos humanos, que a comunidade internacional proclamou solenemente há 75 anos como o fundamento de uma nova ordem após os horrores da guerra, também poderia ser um ponto de referência para a comunidade internacional hoje.

Necessidade de reforma da ONU, mais representativa

Por outro lado, especialmente a crise da guerra na Ucrânia, aponta Dom Gallagher, marcou “uma profunda crise do sistema multilateral e das grandes organizações, especialmente as Nações Unidas”. E ele espera: “Como é necessária uma reforma do funcionamento dessa organização, de uma forma mais representativa, que leve em conta as necessidades de todos os povos! Para isso”, ele pede, “precisamos do apoio de toda a comunidade internacional e da recuperação do ‘espírito de Helsinque'”.

No sinal da misericórdia, acabem com a guerra na Ucrânia

O Secretário de Relações com os Estados não deixa de mencionar também o risco para a Europa de “se tornar cada vez mais um corpo – talvez até aparentemente bem organizado e muito funcional – mas sem alma; o que contrasta profundamente com a verdadeira identidade da Europa, que é rica em história, tradição e humanidade”. Isso tem a ver com o respeito pela dignidade das pessoas. Por fim, Gallagher insiste no fato de que a responsabilidade política deve ser vivida “no sinal da misericórdia, como uma forma elevada de caridade”. Nesse horizonte, ele ressalta que “não podemos nos resignar ao fato de que a guerra na Ucrânia pode continuar por muito tempo com consequências trágicas e inimagináveis”. E continua: “Mesmo que no momento pareça não haver abertura para possíveis negociações, nunca devemos perder a esperança e, especialmente os que acreditam em Cristo, devem manter vivo o ideal de paz e confiar em Deus que essa guerra terminará, mesmo que não seja o fim imaginado pelo Presidente Zelensky ou pelo Presidente Putin. Todos nós queremos uma paz justa, mas a paz deve vir e, para isso, se necessário, devemos também começar a “pensar o impensável”. O desejo é de “uma paz concreta, mutável e evolutiva, de modo que ela seja o elo de um novo processo virtuoso entre as partes em conflito e não apenas uma alocação de vencedores e perdedores”.

Fonte: Vatican News

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