Irmã Valessa Silva Farias: ‘Nosso carisma é escolher os últimos’

Após dez anos no Haiti, Irmã Valessa Silva Farias, 30, missionária da Missão Belém, retornou ao Brasil com o coração repleto de recordações da experiência vivida em meio ao país mais pobre das Américas, marcado pelas consequências do terremoto de 2010 e a crescente onda de violência que desencadeou uma profunda crise humanitária.

Nascida na Bahia e criada em Jundiaí (SP), a missionária contou ao O SÃO PAULO como a Missão Belém realiza seu trabalho apostólico com os mais pobres entre os pobres, em uma favela erguida literalmente sobre o lixo.

O SÃO PAULO – Quando você iniciou sua caminhada na Missão Belém?

Irmã Valessa Silva Farias – Eu comecei na Missão Belém quando fiz o encontro querigmático em 2009. Desde então, passei a acompanhar os missionários e a me apaixonar pelo carisma, pela vivência, sobretudo após visitar a região da Cracolândia pela primeira vez. Em 2012, quando completei 18 anos, eu deixei minha casa e meu trabalho para viver na comunidade. Naquela época, íamos para a comunidade para dedicar um ano para Deus. Só que aquele ano acabou se transformando em doze.

E como você foi parar no Haiti?

Foi um grande presente de Deus. Depois do meu primeiro ano na comunidade, em 2013, eu iniciei o noviciado. Então, fui designada para ir ao Haiti, para trabalhar na construção da nossa escola. Para mim, foi, ao mesmo tempo, um choque e uma alegria.

Quando digo construir a escola, eu estou falando colocar literalmente a mão na massa. Lá, já havia algumas salas de aula, mas precisávamos construir mais salas e iniciar a construção de um pequeno centro de saúde. A situação era muito crítica. A cada dois dias uma criança morria.

Então, a Missão está em uma realidade bem precária…

Sim! Estamos no bairro mais pobre e violento de Porto Príncipe. Na verdade, é uma grande favela construída sobre o lixo que se acumulou ao longo dos anos no litoral e, por isso, não há saneamento básico, não chega água potável, não há nada. Hoje, já chega energia elétrica em poucos lugares da favela. Porém, só temos acesso à água potável por meio de caminhões-pipa. É uma realidade de pobreza extrema. Como não há banheiro nas casas, era comum ver as crianças e até adultos indo até algum amontoado de lixo para fazer suas necessidades. Isso é muito desumano, pois nem o mínimo, nem o básico eles têm.

A maioria das crianças só faz uma refeição por dia, na escola, e tem que se sustentar até o próximo dia. Por isso, havia muitas mortes por desnutrição. Tanto que, mesmo nos períodos festivos, em que não costuma haver aulas, nós não interrompemos o fornecimento das refeições para as crianças e até para adultos que, às vezes, procuram.

Como é o serviço de saúde?

Bastante precário. Lá, até nos hospitais públicos é necessário pagar para ser consultado, fazer exames, receber um medicamento ou um curativo. Marcou-me muito um fato que ocorreu quando eu ainda não havia feito os primeiros votos (2015). Chegou até nós uma criança bastante desnutrida que passamos a cuidar. Nesse período, descobrimos que ela possuía uma cardiopatia e precisaria passar por uma cirurgia. Para isso, porém, ela precisaria ganhar o peso mínimo para enfrentar o procedimento. Nós até conseguimos fazer com que ela ganhasse peso e já estava com uma consulta marcada para a avaliação cirúrgica, mas por ser uma criança bem frágil, pegou uma pequena gripe que logo se agravou e quando corremos para levá-la ao hospital, já com dificuldade para respirar, nem chegaram a examiná-la e, infelizmente, ela não resistiu.

São realidades como essas que nos motivaram a construir um centro de saúde que, se Deus quiser, será inaugurado no início de 2024, graças à ajuda de benfeitores, especialmente da Itália. Ele já funciona provisoriamente nas salas anexas à escola. Mas estão sendo concluídos dois blocos que funcionarão como uma espécie de Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). É aquilo que conseguimos fazer e que está ao nosso alcance.

E em meio a essa situação precária, ainda há a violência?

Infelizmente, sim. Desde 2018, com a saída das forças internacionais da ONU, o país começou a ser tomado pelo conflito de gangues rivais, que se agravou com o assassinato do presidente do Haiti [Jovenel Moïse], em 2021. Nessa ocasião, houve bloqueios criados pelas gangues nas principais estradas do país que impedem a entrada de mantimentos e de demais insumos. Podemos dizer que, atualmente, todo o país está nas mãos dessas gangues, ainda sem eleger um presidente, e quem mais sofre com isso é a população.

Certa vez, recebemos no nosso centro de saúde um dos bandidos ferido. Ele gritava que não queria morrer. Eu, então, comecei a conversar com ele, tentando fazê-lo refletir se valia a pena continuar nessa vida. Então, respondeu-me que no seu país não havia opção a não ser morrer, estando ou não na criminalidade. De fato, a maioria das pessoas não tem mais esperança. É muito triste.

Nós permanecemos lá. Atualmente, são quatro missionários brasileiros e um italiano, ajudados por cooperadores e profissionais haitianos. Não podemos parar. Temos cerca de 3,3 mil alunos na nossa escola e o centro de saúde atende mensalmente 4 mil pessoas. Mas a pressão da violência também atinge os missionários. Muitas congregações religiosas estão deixando o país, como o grupo das missionárias da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), que teve a casa invadida duas vezes por criminosos. A situação é muito difícil.

O trabalho de vocês no Haiti vai além da dimensão assistencial?

Sem dúvida! Em meio a todo esse trabalho de misericórdia, há também a evangelização, a começar pela espiritualidade que fundamenta todo o nosso trabalho, mas também pelas ações apostólicas que realizamos, sobretudo aos domingos, com os jovens e as crianças, que saem evangelizando pelo bairro e aprendendo desde cedo a realizar as obras de misericórdia. Felizmente, graças à ajuda dos padres salesianos, podemos contar com a missa dominical.

Nosso maior foco são as crianças e os jovens, pois entendemos que se queremos construir um futuro melhor para o país, devemos começar pela base. Devido à situação de miséria no Haiti, percebemos que os haitianos colocam as crianças em último lugar das prioridades de cuidado. Se há uma quantidade de comida na casa, o primeiro que vai se alimentar é o homem da família, depois a mãe, depois os mais velhos e o que sobra fica para as crianças. E assim, como nosso carisma é escolher os últimos, entendemos que devemos começar pelas crianças, as últimas naquela sociedade. Nem sempre somos compreendidos por isso. Mas é a nossa missão.

Nestes dez anos de missão, o que sustentou seu trabalho no Haiti?

Não tenho dúvidas de que foi a oração. Sem ter os olhos fixos em Jesus, não dá para caminhar. O que mais aprendi foi reconhecer Jesus no pobre. Uma prova disso foi quando meu pai faleceu, em 2014, e não pude me despedir dele. Lembro-me de que fui para a capela e, chorando, entregava a vida dele para o Senhor. Naquela época, eu tinha começado uma pastoral voltada para os jovens e não podia parar. Então, senti uma força que falava dentro de mim para continuar a missão. Quando saí da capela, passando pelo pequeno pátio da escola, as crianças, como sempre faziam, cercaram-me de abraços. Ali, eu compreendi que era Jesus me abraçando e me consolando. Enxuguei meus olhos e fui realizar o meu trabalho e renovei a minha esperança.

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