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Leis anticonversão, vigilância em celulares e genocídios: em 62 países, há graves violações à liberdade religiosa

Dados constam em recente Relatório Global publicado pela Fundação Pontifícia ACN – Ajuda à Igreja que Sofre, apresentado no Brasil em evento realizado na PUC-SP

Luciney Martins/O SÃO PAULO

“Vi pessoas sendo cruelmente sacrifi­cadas; vi a destruição de aldeias e de so­nhos, mas mesmo no meio da profunda miséria, o povo ainda se agarrava a algo que ninguém lhes podia tirar: fé e espe­rança em Deus”.

Frei Boaventura, missionário brasi­leiro em Cabo Delgado, norte de Mo­çambique, faz parte de uma estatística tão alarmante como silenciada: dois ter­ços da população mundial, equivalente a 5,4 bilhões de pessoas, vivem hoje em países nos quais a liberdade religiosa é fortemente violada.

Estes dados são do Relatório de Li­berdade Religiosa no Mundo – 2025, lançado no Brasil na quinta-feira, 23, pela fundação pontifícia ACN – Ajuda à Igreja que Sofre, no auditório do campus Ipiranga da PUC-SP.

Participaram do lançamento o Car­deal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo; a mãe Rita de Cássia Souza, representante das religiões de matriz africana; a pastora presbiteriana Dama­ris Moura, autora da lei estadual que pro­tege a liberdade religiosa em São Paulo; e o xeique Mohammad Al Bukai, imã da Mesquita Brasil.

Em um diálogo marcado pela escuta e pelo respeito, cada tradição comparti­lhou sua visão sobre o direito de crer e de ser respeitado, respondendo perguntas do público e dos que acompanhavam a transmissão ao vivo.

“Basta que uma religião não seja livre para que o conceito de liberdade esteja fragmentado por si só. O Relatório, úni­co não governamental que atinge todos os países do mundo e todas as religi­ões, representa um caminho para a paz, construído sobre o conhecimento mútuo e o respeito”, afirmou Ana Manente, pre­sidente da ACN no Brasil.

CRIADOS À MESMA IMAGEM

Dom Odilo destacou a preocupação do Papa Leão XIV com as violações da liberdade religiosa em todas as profissões de fé. “O Papa chama a atenção para di­versas violações da liberdade religiosa e da consciência, que não afetam apenas cristãos ou católicos, mas pessoas de to­das as religiões”.

Com base na declaração Nostra Aeta­te, publicada há 60 anos, o Cardeal enfa­tizou o valor do diálogo inter-religioso e da fraternidade universal: “Não é possí­vel considerar Deus como Pai comum de todos se nos recusamos a tratar como ir­mãos os homens criados à sua imagem.”

A pastora Damaris Moura lembrou que a Lei 17.346, proposta por ela no exercício de deputada estadual em São Paulo em 2019, nasceu da escuta de dife­rentes grupos religiosos e busca detalhar formas práticas de garantir esse direito. Ela reforçou ainda que a luta pela liber­dade começa na sala de aula: “A liberda­de religiosa não pode ser defendida com armas, mas sim por meio da educação”.

O xeique Mohammad comparou os defensores da liberdade religiosa a “mé­dicos sociais”, capazes de diagnosticar e curar uma “ferida social”. Ressaltou, ainda, que o extremismo não nasce da religião, mas da personalidade humana: “Deus não quer religião forçada, porque a força cria hipócritas, não fiéis.”

Por sua vez, mãe Rita de Cássia des­tacou que o respeito é responsabilidade de todos: “Precisamos formar pessoas que entendam e respeitem a escolha do outro.” Ela também mencionou o papel do Fórum Inter-Religioso em capacitar empresas e escolas para promover “a li­berdade e a paz, ajudando as pessoas a reagirem a favor da escolha individual e do direito à fé”.

NAS MÃOS DO PAPA

O primeiro exemplar do relató­rio foi entregue ao Papa Leão XIV em audiência privada no Vaticano, em 10 de outubro, marcando os 25 anos das publicações bienais. Na ocasião, o Pon­tífice afirmou que “o mundo continua testemunhando uma crescente hosti­lidade e violência contra aqueles que têm convicções diferentes, incluindo muitos cristãos. Em contraste, a vossa missão [membros da ACN] proclama que, como uma só família em Cristo, não abandonamos os nossos irmãos e irmãs perseguidos. Em vez disso, lem­bramos deles, estamos com eles e tra­balhamos para garantir suas liberdades dadas por Deus”.

O Papa agradeceu à ACN e exortou os seus membros: “Não se cansem de fa­zer o bem, pois o seu serviço dá frutos em inúmeras vidas.”

5,4 BILHÕES DE PESSOAS VIVEM EM PAÍSES COM PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA

ACN

O relatório revela que a liberdade re­ligiosa sofreu graves violações em 62 pa­íses. Desses, 24 estão classificados como de “perseguição” e 38 como de “discri­minação”. Em 75% dos casos, a situação piorou nos últimos dois anos, especial­mente na China, Índia, Nigéria e Coreia do Norte, onde a repressão se tornou mais sistemática.

Esses dados mostram que o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, previsto no artigo 18 da Decla­ração Universal dos Direitos Humanos, está não apenas sob pressão, mas em processo de erosão global.

CONTROLE AUTORITÁRIO

Na América Latina, observa-se um padrão de controle autoritário em países como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Haiti e México, além de Bolívia, Chile, Colôm­bia e Honduras, classificados “sob obser­vação”. A liberdade religiosa é fragilizada pela politização da fé e pela pressão sobre Igrejas críticas aos governos.

Na Ásia, governos utilizam leis e es­truturas burocráticas para sufocar a ex­pressão religiosa. Na Coreia do Norte, Irã, Vietnã e Laos, políticas de siniciza­ção impõem alinhamento ideológico às comunidades de fé e restringem o ensino religioso para menores. Nessas regiões, prisões, destruição de templos e vigilân­cia constante evidenciam o controle esta­tal sobre a prática da fé.

Na China, por exemplo, menores de 18 anos são proibidos de toda a prática religiosa, privando assim as comunida­des de fé dos seus esforços de desenvol­vimento juvenil e representando uma ameaça existencial ao seu futuro. Em setembro de 2023, um sacerdote cató­lico, o Padre Joseph Yang Xiaoming, foi condenado por acusações de “fazer-se passar por religioso” e de conseguir dinheiro de modo fraudulento, depois de se ter recusado a se inscrever na Associação Patriótica Católica Chine­sa, aprovada pelo Estado. O tribunal impôs-lhe sanções administrativas, incluindo a ordem de cessar a prática sacerdotal.

CRIME ORGANIZADO COM A MIRA NA FÉ

Em regiões marcadas pela ausên­cia de Estado, grupos criminosos tam­bém interferem na liberdade religiosa. Na América Latina, cartéis impõem restrições a cultos, sequestram líderes e transformam igrejas em refúgios de sobrevivência.

No Haiti, sacerdotes e religiosas tor­naram-se alvos frequentes de sequestros; no México, o assassinato de padres cres­ce ano após ano. No Equador e na Guate­mala, cultos ligados a gangues misturam fé e violência.

Situação semelhante ocorre em paí­ses da África Subsaariana, como Burkina Faso, Nigéria e República Democrática do Congo, nos quais o crime organizado e milícias religiosas perpetuam ataques e execuções de líderes espirituais.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA OPRIMIR

O ambiente digital tornou-se um novo campo de repressão. Governos autoritários censuram conteúdos reli­giosos, monitoram usuários e punem publicações consideradas dissidentes. Na China e na Rússia, plataformas re­ligiosas são bloqueadas e a vigilância digital rotula minorias como extre­mistas. Paralelamente, grupos radicais exploram as redes para espalhar ódio e incitar à violência, aprofundando a polarização.

No Paquistão, milhares de acusações de blasfêmia nascem de publicações on­-line, muitas vezes manipuladas por Inte­ligência Artificial. E na Coreia do Norte, relatos apontam que o regime faz captu­ras automáticas de tela em cada celular a cada cinco minutos.

“Todos os dados do Relatório impres­sionam, mas o que mais me surpreendeu foi a perseguição no ambiente digital. Pensar que apenas enviar uma mensa­gem pelo WhatsApp ou assistir a um ví­deo no YouTube sozinho no quarto pode colocar alguém em risco, me impactou profundamente”, disse Raylson Araú­jo, mestrando no curso de Teologia da PUC-SP, que participou do evento.

UMA PETIÇÃO GLOBAL PELA PAZ

Valter Callegari, diretor executivo da ACN no Brasil, destacou que a defesa da liberdade religiosa também se expressa em ações concretas voltadas à promo­ção desse direito universal. “Temos um trabalho de advocacy, levando represen­tantes religiosos para testemunhar suas realidades no Parlamento Europeu e nas Nações Unidas”, explicou.

Ele também apresentou a petição internacional em defesa da liberdade religiosa, já em circulação em diversos países. As primeiras assinaturas no Bra­sil foram registradas pelos integrantes da do evento do dia 23. Em breve, a petição será disponibilizada também em forma­to on-line, para que todos possam par­ticipar da manifestação em favor desse direito universal.

Para acessar o Relatório completo e fazer o download do Sumário Executivo, que reúne as principais conclusões do es­tudo, acesse o site https://acn.org.br

‘Ser cristão no Paquistão já não é seguro’

Eram 6 horas da manhã quando tudo começou. Eu e a minha família es­távamos em casa e fomos subitamente acordados por uma multidão em frente à nossa casa. Gritavam: ‘Vamos quei­mar vocês, saiam de casa!’. Acusaram o meu avô de blasfêmia. O meu avô e todos nós dissemos que não sabíamos do que estavam falando. Eles se recusa­ram a aceitar o que dissemos e começa­ram a arrombar as portas e a quebrar as paredes e janelas. Eles incendiaram a fábrica de calçados ao lado, que era de propriedade do meu avô. Roubaram móveis e objetos que tínhamos em casa.

Ficamos escondidos no banheiro du­rante seis ou sete horas até que a polícia nos mandou sair. A essa altura, o lugar inteiro estava destruído. Tudo quebrado, sem água encanada, sem eletricidade. Estávamos desesperados para encontrar meu avô. Encontramos um homem ca­ído no chão. Ele estava coberto de san­gue. Os seus dentes estavam quebrados, assim como o nariz, e todos os ossos do seu corpo pareciam estar esmagados. Disseram-nos que aquele homem ali caí­do era o meu avô, mas simplesmente não conseguíamos acreditar. Pouco depois, o meu avô morreu no hospital devido aos ferimentos e, em poucos dias, a minha avó também mor­reu, tamanha era a sua dor.

O meu avô e toda a nossa família foram vítimas de per­seguição por causa da nossa fé. Somos uma minoria e não prejudi­camos os outros, mas eles nos preju­dicam. Ser cristão no Paquistão já não é seguro”.

*Relato de Miriam (nome fictício), uma das vítimas da perseguição religiosa no Paquistão

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