Dados constam em recente Relatório Global publicado pela Fundação Pontifícia ACN – Ajuda à Igreja que Sofre, apresentado no Brasil em evento realizado na PUC-SP

“Vi pessoas sendo cruelmente sacrificadas; vi a destruição de aldeias e de sonhos, mas mesmo no meio da profunda miséria, o povo ainda se agarrava a algo que ninguém lhes podia tirar: fé e esperança em Deus”.
Frei Boaventura, missionário brasileiro em Cabo Delgado, norte de Moçambique, faz parte de uma estatística tão alarmante como silenciada: dois terços da população mundial, equivalente a 5,4 bilhões de pessoas, vivem hoje em países nos quais a liberdade religiosa é fortemente violada.
Estes dados são do Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo – 2025, lançado no Brasil na quinta-feira, 23, pela fundação pontifícia ACN – Ajuda à Igreja que Sofre, no auditório do campus Ipiranga da PUC-SP.
Participaram do lançamento o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo; a mãe Rita de Cássia Souza, representante das religiões de matriz africana; a pastora presbiteriana Damaris Moura, autora da lei estadual que protege a liberdade religiosa em São Paulo; e o xeique Mohammad Al Bukai, imã da Mesquita Brasil.
Em um diálogo marcado pela escuta e pelo respeito, cada tradição compartilhou sua visão sobre o direito de crer e de ser respeitado, respondendo perguntas do público e dos que acompanhavam a transmissão ao vivo.
“Basta que uma religião não seja livre para que o conceito de liberdade esteja fragmentado por si só. O Relatório, único não governamental que atinge todos os países do mundo e todas as religiões, representa um caminho para a paz, construído sobre o conhecimento mútuo e o respeito”, afirmou Ana Manente, presidente da ACN no Brasil.
CRIADOS À MESMA IMAGEM
Dom Odilo destacou a preocupação do Papa Leão XIV com as violações da liberdade religiosa em todas as profissões de fé. “O Papa chama a atenção para diversas violações da liberdade religiosa e da consciência, que não afetam apenas cristãos ou católicos, mas pessoas de todas as religiões”.
Com base na declaração Nostra Aetate, publicada há 60 anos, o Cardeal enfatizou o valor do diálogo inter-religioso e da fraternidade universal: “Não é possível considerar Deus como Pai comum de todos se nos recusamos a tratar como irmãos os homens criados à sua imagem.”
A pastora Damaris Moura lembrou que a Lei 17.346, proposta por ela no exercício de deputada estadual em São Paulo em 2019, nasceu da escuta de diferentes grupos religiosos e busca detalhar formas práticas de garantir esse direito. Ela reforçou ainda que a luta pela liberdade começa na sala de aula: “A liberdade religiosa não pode ser defendida com armas, mas sim por meio da educação”.
O xeique Mohammad comparou os defensores da liberdade religiosa a “médicos sociais”, capazes de diagnosticar e curar uma “ferida social”. Ressaltou, ainda, que o extremismo não nasce da religião, mas da personalidade humana: “Deus não quer religião forçada, porque a força cria hipócritas, não fiéis.”
Por sua vez, mãe Rita de Cássia destacou que o respeito é responsabilidade de todos: “Precisamos formar pessoas que entendam e respeitem a escolha do outro.” Ela também mencionou o papel do Fórum Inter-Religioso em capacitar empresas e escolas para promover “a liberdade e a paz, ajudando as pessoas a reagirem a favor da escolha individual e do direito à fé”.
NAS MÃOS DO PAPA
O primeiro exemplar do relatório foi entregue ao Papa Leão XIV em audiência privada no Vaticano, em 10 de outubro, marcando os 25 anos das publicações bienais. Na ocasião, o Pontífice afirmou que “o mundo continua testemunhando uma crescente hostilidade e violência contra aqueles que têm convicções diferentes, incluindo muitos cristãos. Em contraste, a vossa missão [membros da ACN] proclama que, como uma só família em Cristo, não abandonamos os nossos irmãos e irmãs perseguidos. Em vez disso, lembramos deles, estamos com eles e trabalhamos para garantir suas liberdades dadas por Deus”.
O Papa agradeceu à ACN e exortou os seus membros: “Não se cansem de fazer o bem, pois o seu serviço dá frutos em inúmeras vidas.”
5,4 BILHÕES DE PESSOAS VIVEM EM PAÍSES COM PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA

O relatório revela que a liberdade religiosa sofreu graves violações em 62 países. Desses, 24 estão classificados como de “perseguição” e 38 como de “discriminação”. Em 75% dos casos, a situação piorou nos últimos dois anos, especialmente na China, Índia, Nigéria e Coreia do Norte, onde a repressão se tornou mais sistemática.
Esses dados mostram que o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, previsto no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, está não apenas sob pressão, mas em processo de erosão global.
CONTROLE AUTORITÁRIO
Na América Latina, observa-se um padrão de controle autoritário em países como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Haiti e México, além de Bolívia, Chile, Colômbia e Honduras, classificados “sob observação”. A liberdade religiosa é fragilizada pela politização da fé e pela pressão sobre Igrejas críticas aos governos.
Na Ásia, governos utilizam leis e estruturas burocráticas para sufocar a expressão religiosa. Na Coreia do Norte, Irã, Vietnã e Laos, políticas de sinicização impõem alinhamento ideológico às comunidades de fé e restringem o ensino religioso para menores. Nessas regiões, prisões, destruição de templos e vigilância constante evidenciam o controle estatal sobre a prática da fé.
Na China, por exemplo, menores de 18 anos são proibidos de toda a prática religiosa, privando assim as comunidades de fé dos seus esforços de desenvolvimento juvenil e representando uma ameaça existencial ao seu futuro. Em setembro de 2023, um sacerdote católico, o Padre Joseph Yang Xiaoming, foi condenado por acusações de “fazer-se passar por religioso” e de conseguir dinheiro de modo fraudulento, depois de se ter recusado a se inscrever na Associação Patriótica Católica Chinesa, aprovada pelo Estado. O tribunal impôs-lhe sanções administrativas, incluindo a ordem de cessar a prática sacerdotal.
CRIME ORGANIZADO COM A MIRA NA FÉ
Em regiões marcadas pela ausência de Estado, grupos criminosos também interferem na liberdade religiosa. Na América Latina, cartéis impõem restrições a cultos, sequestram líderes e transformam igrejas em refúgios de sobrevivência.
No Haiti, sacerdotes e religiosas tornaram-se alvos frequentes de sequestros; no México, o assassinato de padres cresce ano após ano. No Equador e na Guatemala, cultos ligados a gangues misturam fé e violência.
Situação semelhante ocorre em países da África Subsaariana, como Burkina Faso, Nigéria e República Democrática do Congo, nos quais o crime organizado e milícias religiosas perpetuam ataques e execuções de líderes espirituais.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA OPRIMIR
O ambiente digital tornou-se um novo campo de repressão. Governos autoritários censuram conteúdos religiosos, monitoram usuários e punem publicações consideradas dissidentes. Na China e na Rússia, plataformas religiosas são bloqueadas e a vigilância digital rotula minorias como extremistas. Paralelamente, grupos radicais exploram as redes para espalhar ódio e incitar à violência, aprofundando a polarização.
No Paquistão, milhares de acusações de blasfêmia nascem de publicações on-line, muitas vezes manipuladas por Inteligência Artificial. E na Coreia do Norte, relatos apontam que o regime faz capturas automáticas de tela em cada celular a cada cinco minutos.
“Todos os dados do Relatório impressionam, mas o que mais me surpreendeu foi a perseguição no ambiente digital. Pensar que apenas enviar uma mensagem pelo WhatsApp ou assistir a um vídeo no YouTube sozinho no quarto pode colocar alguém em risco, me impactou profundamente”, disse Raylson Araújo, mestrando no curso de Teologia da PUC-SP, que participou do evento.
UMA PETIÇÃO GLOBAL PELA PAZ

Valter Callegari, diretor executivo da ACN no Brasil, destacou que a defesa da liberdade religiosa também se expressa em ações concretas voltadas à promoção desse direito universal. “Temos um trabalho de advocacy, levando representantes religiosos para testemunhar suas realidades no Parlamento Europeu e nas Nações Unidas”, explicou.
Ele também apresentou a petição internacional em defesa da liberdade religiosa, já em circulação em diversos países. As primeiras assinaturas no Brasil foram registradas pelos integrantes da do evento do dia 23. Em breve, a petição será disponibilizada também em formato on-line, para que todos possam participar da manifestação em favor desse direito universal.
Para acessar o Relatório completo e fazer o download do Sumário Executivo, que reúne as principais conclusões do estudo, acesse o site https://acn.org.br

‘Ser cristão no Paquistão já não é seguro’
“Eram 6 horas da manhã quando tudo começou. Eu e a minha família estávamos em casa e fomos subitamente acordados por uma multidão em frente à nossa casa. Gritavam: ‘Vamos queimar vocês, saiam de casa!’. Acusaram o meu avô de blasfêmia. O meu avô e todos nós dissemos que não sabíamos do que estavam falando. Eles se recusaram a aceitar o que dissemos e começaram a arrombar as portas e a quebrar as paredes e janelas. Eles incendiaram a fábrica de calçados ao lado, que era de propriedade do meu avô. Roubaram móveis e objetos que tínhamos em casa.
Ficamos escondidos no banheiro durante seis ou sete horas até que a polícia nos mandou sair. A essa altura, o lugar inteiro estava destruído. Tudo quebrado, sem água encanada, sem eletricidade. Estávamos desesperados para encontrar meu avô. Encontramos um homem caído no chão. Ele estava coberto de sangue. Os seus dentes estavam quebrados, assim como o nariz, e todos os ossos do seu corpo pareciam estar esmagados. Disseram-nos que aquele homem ali caído era o meu avô, mas simplesmente não conseguíamos acreditar. Pouco depois, o meu avô morreu no hospital devido aos ferimentos e, em poucos dias, a minha avó também morreu, tamanha era a sua dor.
O meu avô e toda a nossa família foram vítimas de perseguição por causa da nossa fé. Somos uma minoria e não prejudicamos os outros, mas eles nos prejudicam. Ser cristão no Paquistão já não é seguro”.
*Relato de Miriam (nome fictício), uma das vítimas da perseguição religiosa no Paquistão






