Essa forma de meditação remonta aos primeiros padres da Igreja e é muito associada à espiritualidade beneditina. Trata-se de uma forma de oração que pode enriquecer a vida de fé de todo batizado, independentemente do seu estado de vida
No mês de setembro, a Igreja recorda a importância das Sagradas Escrituras e convida os fiéis a conhecê-las e meditá-las com maior intimidade. Uma das formas mais antigas para se aprofundar na Palavra de Deus é a Lectio Divina.
A Lectio Divina, traduzida às vezes como leitura orante ou leitura meditada da Bíblia, é uma forma de meditação que remonta aos primeiros padres da Igreja, muito associada à espiritualidade beneditina. Entretanto, ela é uma forma de oração que pode enriquecer a vida de fé de todo batizado, independentemente do seu estado de vida.
O Concílio Vaticano II, em diversos documentos, reforçou a importância da meditação da Palavra de Deus. Em relação aos leigos, o documento Apostolicam actuositatem afirma que “só com a luz da fé e a meditação da Palavra de Deus pode alguém reconhecer sempre e em toda a parte a Deus no qual ‘vivemos, nos movemos e somos’ (At 17,28), procurar em todas as circunstâncias a Sua vontade, ver Cristo em todos os homens, quer chegados, quer estranhos, julgar retamente o verdadeiro sentido e valor das realidades temporais, em si mesmas e em ordem ao fim do homem”.
O livro mais conhecido sobre a Lectio Divina foi escrito por Guigo II, um cartuxo do século XII. A “Carta sobre a Vida Contemplativa” é um clássico da espiritualidade e sistematiza com clareza as etapas para realizar com fruto a leitura meditada da Bíblia. Guigo II a dividiu em quatro etapas: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação.
A leitura
A leitura é a primeira etapa de toda Lectio Divina. É por meio dela que nos deparamos com o texto das Sagradas Escrituras e tiramos o material para a meditação. Para que seja realizada frutuosamente, a leitura deve ser precedida de uma invocação do Espírito Santo, que ilumina a inteligência para compreender e fortalecer a vontade para amar o que será lido.
Para que a Lectio seja divina, e não meramente humana, o Espírito Santo deve agir. Dizer isso significa que, quando entramos na Lectio, não buscaremos o que queremos ouvir ou o que nos agrada. Assim, a passagem a ser meditada não pode ser escolhida a esmo, de acordo com as preferências individuais. Recomenda-se que se siga um livro da Bíblia ou, mesmo, a liturgia diária da missa, para que seja possível que sejamos surpreendidos por Deus na leitura.
A passagem a ser lida não precisa ser longa. Algumas vezes, apenas um versículo é suficiente para basear toda uma Lectio. Guigo II descrevia essa etapa da Lectio como um “ruminar”, pois o orante deve ler diversas vezes e trazer consigo a mesma passagem para começar a ver seu sentido mais profundo. Por isso, para que a Lectio seja bem-feita, é necessário reservar um tempo, mesmo que curto, em que é possível prestar atenção totalmente ao que se faz.
A meditação
“A meditação é uma ação deliberada da mente a investigar, com a ajuda da própria razão, o conhecimento de uma verdade oculta”, definiu esse passo Guigo II. Meditar é partir da leitura e ruminá-la interiormente até que seja possível divisar o seu sentido profundo.
Se meditamos, por exemplo, na seguinte passagem: “Bem-aventurados os puros de coração, porque deles é o Reino do Céus”, devemos, antes de pedir a pureza, compreender o que seja, trazer em nossa memória outras passagens que tratam dela, ver a sua grandeza e importância, para que o nosso coração comece a desejá-la verdadeiramente.
Sem a meditação, a Palavra de Deus não se torna viva para quem a lê. É por meio dela que aquele que reza passa a ter um contato com a Palavra viva, o próprio Cristo, que lhe fala ao coração.
A oração
Os passos anteriores podem ser resumidos a uma escuta da Palavra de Deus; a oração, por sua vez, é um falar com Deus. “Quando escutas, Deus te fala; quando oras, falas com Deus”, escreveu Santo Agostinho.
A oração, na definição de Guigo II, “é uma religiosa aplicação do coração a Deus para afastar os males ou obter o bem”. É pedir a Deus as graças para viver bem o que foi meditado ou que Ele afaste tudo aquilo que impede a vida de santidade. É um diálogo de um filho com o Pai, cheio de confiança. Na oração, não são necessárias palavras bonitas ou frases bem construídas. Às vezes, repetir ou se utilizar das palavras das Escrituras é o suficiente.
Não é a originalidade que ganhará o coração de Deus; mas a entrega sincera de nosso coração a Ele, com humildade e simplicidade, reconhecendo, muitas vezes, nossa incapacidade de rezar e nossa necessidade de tomar palavras emprestadas da própria Palavra de Deus.
A contemplação
A última etapa é a contemplação, que consiste numa simplex intuitus, num simples olhar a Deus. É um olhar que não se utiliza de palavras, que se contenta com a presença do amado. Um olhar de humildade, pois a alma reconhece, nesse estágio, sua incapacidade e pequenez. Chegar à contemplação não é fruto de nossos esforços: Deus no-la concede quando quer.
Pouco se pode falar sobre a contemplação. Os santos que viviam constantemente nela não podiam relatá-la com precisão. Por se tratar de uma oração sem palavras, que nos eleva a Deus, não podem existir expressões que a traduzam. João de Fécamp, um monge beneditino do século XI, um dos mais lidos escritores espirituais medievais, assim a descreveu: “Nada alegra tanto meu espírito quanto o momento em que para Ti, meu Deus, ergo o olhar simples de um coração puro! Tudo se cala, tudo é calmo; o coração arde de amor, a alma transborda de alegria, a memória está cheia de vigor, a inteligência, de luz. E o espírito, todo inflamado do desejo de ver tua beleza, vê-se deslumbrado no amor das realidades invisíveis”.