
Luciney Martins/O SÃO PAULO
“A biblioteca é uma forma de ocuparmos nosso tempo com algo que nos enriquece. Em vez de deixar o tempo ocioso, é melhor mergulhar no conhecimento, na arte, adquirir sabedoria. É disso que estamos precisando”, comemorou Adriano Casado, 52, em situação de rua há 16 anos, e acolhido pelas ações da Pastoral do Povo da Rua.
Na manhã de sexta-feira, dia 1º, ele esteve no Centro Comunitário Santa Dulce dos Pobres, na Mooca, e viu a inauguração da Biblioteca Wilma Lancellotti, um espaço comunitário idealizado pelo Padre Júlio Lancellotti, Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, para promover o acesso à leitura, à informação e à cidadania.
A inauguração contou com a presença do Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, madrinha do projeto e integrante da Academia Brasileira de Letras, além de bibliotecárias voluntárias, representantes de bibliotecas e frequentadores do local.

ESPAÇO QUE TRANSFORMA VIDAS
A biblioteca homenageia Wilma Lancellotti, mãe do Sacerdote, que morreu em 2010 e foi grande incentivadora do gosto do filho pelos livros desde a infância. O acervo é de 8 mil livros, sendo 4 mil em reserva técnica (para eventuais substituições em caso de perdas), todos catalogados por uma equipe de seis bibliotecárias voluntárias. A organização do acervo será feita pelo sistema Sophia Biblioteca, o mesmo utilizado pela Biblioteca Nacional.
Ao O SÃO PAULO, Padre Júlio Lancellotti detalhou que a ideia surgiu da observação do interesse das pessoas em situação de rua pela leitura. “Quando recebíamos os livros de doação e os deixávamos ali na hora do café, eles levavam rapidamente. Percebemos que havia interesse real, então pensamos: por que não criar uma biblioteca neste espaço?”, relatou.
Ele explicou que o local será aberto a todos, com a possibilidade de a pessoa retirar o livro para empréstimo e devolvê-lo depois.

Ao refletir sobre a dimensão social e transformadora da biblioteca, o Sacerdote destacou que o impacto vai além do acesso ao conhecimento. “É um espaço que transforma vidas, não só de quem está em situação de rua, mas da sociedade como um todo. Como dizia o Papa Francisco, a literatura tem um papel essencial na educação. A leitura nos permite compreender que aquilo que sentimos não é exclusivo nosso, é humano. E, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só. A leitura aproxima, humaniza, dá dignidade. Essa biblioteca é mais do que um acervo, é um gesto de inclusão e de respeito.”
Na biblioteca também há computadores, nos quais as pessoas em situação de rua podem buscar apoio para a emissão de documentos e receber ajuda na busca por emprego.

SINAL DE ESPERANÇA PARA OS POBRES
“Alegro-me muito por este momento, por esta realização tão significativa. Trata-se de uma biblioteca pensada para os pobres, para pessoas em situação de rua que, muitas vezes, não têm acesso ou contato próximo com os livros e a literatura. Aqui, neste espaço em que já são acolhidos com o pão e outros cuidados, agora também têm acesso à leitura”, afirmou o Cardeal Scherer durante a inauguração da biblioteca.
Ele cumprimentou o Padre Júlio Lancellotti, bem como a equipe envolvida no projeto, voluntários e doadores. “Esta feliz iniciativa mostra como o bem é difusivo por si mesmo, como já dizia a filosofia: o bem atrai o bem. Quando se começa algo bom, outras pessoas e ações se somam. E é o que está acontecendo aqui, com tantas parcerias de voluntariado que ajudam a transformar essa biblioteca em um verdadeiro sinal de esperança.”

“Alguém pode perguntar: o pobre precisa de livro? Sim, precisa. Precisa de pão, de cobertor, de remédio, de abrigo, mas também precisa de alimento para a alma, para a imaginação, para se situar no mundo. Nada melhor do que uma biblioteca para isso. As necessidades humanas vão muito além do comer, beber e dormir. E esta iniciativa oferece algo essencial: a possibilidade de sonhar”, prosseguiu Dom Odilo.
“Precisamos dar sinais de esperança ao mundo, em um tempo em que ela anda escassa. A leitura, o estudo, o cuidado com os mais vulneráveis — tudo isso é sinal de esperança concreta”, lembrou o Arcebispo, fazendo alusão ao tema deste Ano Jubilar, “Peregrinos de Esperança”.
“Aqui existe a possibilidade de mudança. Que a semente lançada hoje frutifique. Que esta biblioteca tenha longa vida e seja fonte de transformação para muitos”, desejou Dom Odilo.

O PAPEL DAS BIBLIOTECAS
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, madrinha do projeto, emocionou-se ao ser homenageada durante a inauguração.
Ela destacou a força simbólica e política das bibliotecas ao longo da história: “Muitas bibliotecas no mundo foram destruídas, especialmente por regimes autoritários que entendem o poder da leitura. As bibliotecas sempre abrigaram fantasmas, possibilidades, riquezas e aberturas para o mundo – por isso, tantas vezes foram queimadas ou censuradas.”
Lilia também relembrou um episódio marcante da história brasileira: “Quando o Brasil conquistou a independência, em 1822, pagamos caro a Portugal para manter aqui a biblioteca real. Foi o segundo item mais custoso daquela negociação, mais caro até do que os navios deixados. Por quê? Porque sabiam que nos livros morava um patrimônio incalculável. E penso que uma biblioteca como esta, voltada para quem mais precisa, tem valor semelhante.”

Por fim, ela ressaltou o sentido social da iniciativa. “Esta biblioteca é um sinal claro e concreto de esperança. Um espaço que oferece perspectiva de mudança, que planta uma semente de dignidade. Que possamos acreditar juntos que esta semente vai frutificar. Que a leitura continue sendo essa janela aberta para um futuro melhor.”
Uma das bibliotecárias voluntárias é Virgínia Cristina Peixoto Favas, 69. Com 45 anos de experiência na profissão, ela destacou que as bibliotecas têm um papel fundamental na sociedade. “Elas não só formam leitores, mas também oferecem dignidade e pertencimento, especialmente para quem quase sempre é privado de tudo”.
“Atender pessoas que não teriam acesso a uma biblioteca, que não têm oportunidades, é muito gratificante. É uma forma de contribuir com a sociedade, de pensar no coletivo. Nosso objetivo é manter dois profissionais por dia, de segunda a sexta-feira, das 9h às 11h30. Esta inauguração representa alegria, missão cumprida e o privilégio de fazer parte de algo tão bonito”, finalizou a bibliotecária.
A Biblioteca Wilma Lancellotti está localizada na Rua Sapucaia, 36, na Mooca.