Em ato na PUC-SP, participantes lembram que a fome é fruto do egoísmo e da indiferença pessoal e governamental

Encontro levou ao ambiente universitário a temática da CF 2023, com apontamentos daqueles que lidam de perto com as pessoas que vivenciam este flagelo

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

Envolver a comunidade acadêmica nas reflexões sobre o flagelo da fome e contribuir com as demais instâncias e instituições da sociedade no debate sobre este que é o tema da Campanha da Fraternidade de 2023. Este foi o propósito do ato “Fraternidade sem fome”, realizado na quarta-feira, 22, no campus Monte Alegre da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A atividade foi organizada pela PUC-SP, pela Fundação São Paulo (Fundasp) e a Arquidiocese de São Paulo, por meio da Coordenação para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz, à luz do objetivo da CF 2023 de sensibilizar a Igreja a sociedade sobre a realidade da fome no Brasil e no mundo. Participaram professores, alunos, funcionários da PUC-SP, além de representantes da Igreja Católica e da sociedade civil.

NÃO É POSSÍVEL SER INDIFERENTE AO PROBLEMA

Na abertura das atividades, a professora Maria Amália Pie Abib Andery, reitora da PUC-SP, destacou que a empatia é o que distingue os seres humanos dos demais animais, de maneira que humanamente não é concebível ser indiferente a realidade vivenciada por aqueles que passam fome.

“Só é possível aceitar conviver com a fome nos patamares em que hoje ela está se nós fizermos de conta que não a vemos”, enfatizou. “Se olhamos para o outro que tem fome e simplesmente seguimos adiante, sem sentirmos pelo menos algum sofrimento, é porque nos tornamos menos humanos. Atrevo-me até a dizer que neste momento, agindo assim, não somos humanos”.

Maria Amália disse ser inaceitável o fato de que 33 milhões de pessoas no Brasil vivam com fome diariamente e que mais de 58% da população tenha algum nível de insegurança alimentar, uma vez que como cidadãos brasileiros deveriam ter os mesmos direitos que os demais, sendo um dos mais elementares, o direito a se alimentar dignamente.

“A fome também é uma questão política. Não se deve achar normal que países gastem bilhões de dólares em torno de uma guerra, que hoje se gaste bilhões de dólares para enviar pessoas à lua até para fazer turismo, enquanto países que estão do lado Sul do planeta, como o Brasil, tenham a fome estrutural”, prosseguiu.

A reitora pediu o empenho da comunidade acadêmica para pensar em alternativas, que vão além da dimensão caritativa, para erradicar a fome no Brasil: “Esta universidade deveria hoje assumir seriamente, cientificamente, planejadamente e sistematicamente que seu tema de ensino, de pesquisa, de investigação e de prestação de serviço seja a fome, vista como uma questão social, política e estrutural que devemos combater”.

CONHECER E ACOLHER OS QUE PASSAM FOME

Na sequência, Dom Carlos Silva, OFMCap., Bispo Auxiliar da Arquidiocese na Região Brasilândia fez uma breve apresentação sobre os propósitos da CF 2023, destacando que pela terceira vez a Campanha aborda a questão da fome, assim como fez nos anos de 1975 e 1985.

O Bispo, que também é o Referencial Arquidiocesano para o Serviço de Caridade, Justiça e Paz, detalhou números sobre a fome no Brasil e especialmente na cidade de São Paulo, onde este flagelo atinge especialmente as 704 mil famílias em situação de extrema pobreza e os 48,6 mil moradores em situação de rua. Além disso, em 2021, 25% das Unidades Básicas de Saúde da capital paulista registraram algum atendimento decorrente de situações de fome.

Dom Carlos Silva destacou que diante do drama da fome algumas práticas devem ser assumidas por todos, entre as quais a partilha com os que mais necessitam, a colaboração em campanhas de arrecadação de alimentos e o fim do desperdício de comida.

“O que podemos fazer? Primeiro, ouvir e ver os pobres e famintos. Também partilhar. Questionar o porquê de tanta gente morrendo de fome e morrendo na rua, e, com isso, comprometer-se de forma individual. Enquanto Igreja, podemos articular, educar, acolher e servir; e enquanto sociedade, precisamos fiscalizar, cobrar políticas públicas e promover ações”, enfatizou.

PROJETOS E TESTEMUNHOS

O Ato na PUC-SP também foi marcado por duas mesas de reflexões. Na primeira, representantes das pastorais sociais e organismos da Igreja apresentaram as ações que têm feito para atenuar a fome na cidade e relataram os dramas vividos pelas pessoas que vivem este flagelo.

Falaram a este respeito Belenaura de Oliveira Rodrigues, da Pastoral da Criança da Arquidiocese de São Paulo; Frei Mateus Bento dos Santos, do Conselho Indigenista Missionário e coordenador da Pastoral Indigenista da Arquidiocese; e o Frei Marx Rodrigues dos Reis, do Sefras – Ação Social Franciscana.

Membros de outras pastorais, como do Migrante, da Pessoa com Deficiência, do Menor e de Fé e Política também estiveram na atividade.

Além deles, Camilo Vannucchi, autor do livro “FOME: como enfrentar a maior das violências/A TERRA É PLENA: como alimentar o mundo e cuidar do planeta” comentou sobre a incidência da fome no Brasil, destacando que há 20 anos, quando foi lançado o programa Fome Zero, o número dos que passavam fome era a metade dos atuais 33 milhões de brasileiros.

Vannucchi lembrou que além daqueles que passam fome, quem também está em insegurança alimentar tem a saúde prejudicada ao longo do tempo, pois acaba trocando uma alimentação mais saudável por alimentos ultraprocessados ou, como se viu em 2021 e 2022, acabam recorrendo à compra de ossos com restos de carne ou a pele de frango.

O AGIR A PARTIR DA SOCIEDADE

A segunda mesa de reflexões foi aberta com a fala do professor de Economia Rural, Walter Belik, do Instituto de Economia da Unicamp, diretor do Instituto Fome Zero e presidente do Banco de Alimentos da Associação Prato Cheio.

Ele recordou que a iniciativa do Banco de Alimentos, surgida no auge da pandemia de COVID-19 por iniciativa de estudantes universitários, atualmente distribui cerca de 600 toneladas de alimentos por ano, atendendo 53 entidades diariamente.

“A mobilização da sociedade civil no passado e agora é muito necessária. Não podemos deixar simplesmente na mão do governo toda a ação perante a fome”, enfatizou.

Belik, porém, enalteceu o fato de, naquele dia, o Governo federal ter relançado o Programa de Aquisição de Alimentos, que, conforme lembrou, “dá sustentação para a agricultura familiar, na medida em que o Estado compra alimentos da agricultura familiar e os distribui à assistência social, aos bancos de alimentos e à merenda escolar”.

‘NÃO DEVERÍAMOS TER VOLTADO AO MAPA DA FOME’

Com larga experiência na luta por direitos das populações marginalizadas, Eduardo Dias, professor da Faculdade de Direito da PUC-SP e procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, fez um histórico de como a alimentação se tornou uma garantia para todo cidadão no Brasil.

O jurista lembrou que a temática da segurança alimentar não constava inicialmente na Constituição de 1988, e que esse panorama só começou a mudar em 1999, quando o Brasil ratificou o “Protocolo de São Salvador”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no qual se contempla a questão da segurança alimentar.

Apenas em fevereiro de 2010, por meio da Emenda Constitucional 64, foi dada nova redação ao Artigo 6o da Constituição federal, colocando a alimentação como um dos direitos sociais a todos os brasileiros, assim como são a Educação, a Saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Eduardo Dias motivou que na universidade mais trabalhos de conclusão das graduações, bem como dissertações de mestrado e teses de doutorado abordem os direitos sociais previstos no artigo 6o, e que nos cursos de Economia e Contabilidade se estimule os estudantes a olhar não apenas para as grandes corporações empresariais, mas também aos pequenos negócios rurais e cooperativas de reciclagem.

O professor lamentou o fato de o Brasil ter voltado ao Mapa da Fome da ONU, de onde havia saído em 2014, e ressaltou que pelo arcabouço jurídico que existe no País isto não poderia ter acontecido.

“Do ponto de vista jurídico, nós não deveríamos ter chegado a essa situação de voltar ao Mapa da Fome, pois criamos ferramentas suficientes para evitar isso. E por que voltamos? Por que no plano da efetividade nossas instituições falharam”, lamentou.

ALIMENTAÇÃO EFETIVA AOS ‘IRMÃOS DA RUA’

A fala conclusiva da segunda mesa de reflexões coube ao Padre Júlio Lancellotti, Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, e que também está à frente da Casa de Oração do Povo da Rua, espaço que desde 1997 é mantido pela Arquidiocese para ampla atenção aos “irmãos da rua”.

“A população descartada é a população que passa fome”, enfatizou o Sacerdote, ao criticar a lógica econômica global que cada vez mais têm limitado oportunidades para as pessoas mais pobres.

Ao recordar que o próprio texto-base da CF 2023 apresenta a água como um alimento indispensável ao ser humano, Padre Júlio reiterou um apelo que tem feito recorrentemente: que em cada paróquia da Arquidiocese haja um ponto de água potável acessível para as pessoas em situação de rua, e o que mesmo aconteça no campus Monte Alegre da PUC-SP. “Com isso, este alimento fundamental à vida não faltará aos mais pobres, aos descartados, àqueles que são indesejáveis por muitos”, afirmou.

Padre Júlio também pediu a PUC-SP que faça um parecer técnico a respeito da alimentação que é fornecida pela Prefeitura de São Paulo às pessoas em situação de rua, pois a partir de sua experiência de ações caritativas, apenas a oferta de um copo de café com leite de 180ml e de um pão no café da manhã não é capaz de sustentar alguém.

“Eu tenho visto diariamente pessoas que desmaiam de fome, que estão trêmulas de fome, e que quando pegam o pãozinho que produzimos diariamente na Casa de Oração do Povo da Rua – fazemos cerca de 3 mil pães por dia –  enfiam este pão inteirinho na boca, de uma só vez”, relatou.

“É necessário entender a compressão física dessas pessoas, o gasto calórico delas, a necessidade que têm. Além disso, alimentar não é só dar comida, é, também, comer junto! É permitir que a pessoa possa fazer sua comida, fazer as suas escolhas”, apontou, também criticando o fato de que embora cada pessoa em situação de rua custe à Prefeitura e cerca de R$ 1.500 mensais, quase sempre a alimentação ofertada não é de grande qualidade nutricional. “O que chega para a povo da rua quase todo dia é a salsicha”, lamentou.

E por fim, o Sacerdote fez um pedido à PUC-SP: “Vamos fazer uma discussão sobre a fome aqui chamando os moradores de rua? Vamos fazer um almoço com eles? Vamos trazê-los aqui para que um dia na vida sentem-se em um banco universitário e possam dizer o que é a fome?”.

GESTO CONCRETO DA UNIVERSIDADE

Como gesto concreto para a CF 2023, até o final de abril a Pastoral Universitária da PUC-SP está realizando uma campanha de arrecadação de alimentos e doações financeiras destinadas às pastorais sociais da Região Brasilândia. As doações podem ser feitas em diferentes locais da universidade.

ASSISTA A SEGUIR A ÍNTEGRA DO ATO NA PUC-SP – 22/03/2023

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