Fome: o limite da sobrevivência

Em Santo Amaro, pessoas se aglomeram na busca de marmitas. Para muitos, a única refeição do dia em meio à pandemia

A ‘Fila da marmita’ na Praça Floriano Peixoto, zona Sul de São Paulo, tem aumentado a cada semana (fotos: Cláudia Pereira)

Primeiro dia do mês de fevereiro, Praça Floriano Peixoto, zona Sul de São Paulo. Às 8h40, a senhora Maria Lucy Menezes, 74 anos, segurava em suas mãos uma sacola vazia e a ficha de nº 410. Era a primeira vez que ela estava na fila para receber as  marmitas ali entregues. Por indicação de uma amiga, acordou cedo para conseguir um bom lugar na fila e garantir ao menos uma marmita. Pretendia levar duas, mas não conseguiu. Foi obrigada a enfrentar mais uma fila para comprar duas refeições no Bom Prato (programa social do governo do estado), que fica relativamente próximo à praça. Assim, conseguiu levar três refeições para casa e dividir com mais quatro pessoas, entre elas, uma criança de 5 anos. 

“Eu tenho idade avançada e comorbidades. Estou aqui porque preciso. Com esta ficha, já consegui uma marmita, mas preciso de mais algumas para garantir o almoço da minha família”, afirmou Maria Lucy. 

CADA VEZ MENOS MARMITAS

Todos os dias, centenas de pessoas formam filas em sete pontos da cidade de São Paulo para receber refeições distribuídas pelo programa “Rede Cozinha Cidadã”, criado em abril de 2020 com parceria de restaurantes para garantir segurança alimentar para a população em situação de rua. Mais de 90 restaurantes que participam do projeto recebem R$ 10 por refeição fornecida.

Segundo informações da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), a iniciativa já distribuiu mais de 2 milhões de refeições. Além da população em situação de rua, o programa tem atendido trabalhadores informais, desempregados e aqueles em situação de extrema pobreza. Em Santo Amaro, na zona Sul, em um dos pontos da entrega de refeições do projeto, são constantes as reclamações da redução do número de marmitas distribuídas nos últimos meses.

Para não correrem o risco de ficar sem marmitas, as pessoas se aglomeram desde as primeiras horas da manhã, às vezes para garantir a única refeição do dia. Passam a maior parte do seu tempo em busca de alimentos. Um dos entregadores que não quiseram ser identificados afirma que a quantidade de refeições entregues diminuiu de forma gradativa.

Maria Lucy, por ter isenção no transporte público, prefere que a filha fique em casa com as crianças para economizar o dinheiro da família.  A filha e mais três netos dividem a casa com ela em uma comunidade nas proximidades do Largo Treze de Maio. A filha recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 600, o que ajudou nas despesas da casa por sete meses.

O programa do auxílio do governo terminou em dezembro, e o benefício de aposentadoria de Maria Lucy, de um salário mínimo, é a única renda da família. As dificuldades aumentaram e mal dá para pagar as contas básicas da casa e comprar alguns remédios. Ficou mais difícil colocar comida na mesa. 

“Eu ainda me sinto privilegiada porque tenho essa renda. É o que salva um pouco em casa. Ainda não tenho dificuldades para andar e posso correr atrás da sobrevivência. A minha esperança é que a vacina chegue logo para imunizar a todos, e que essa situação melhore para todos nós”, afirmou Maria Lucy, com os olhos cheios de lágrimas, quase escondidos por uma máscara. 

Por volta de 10h30, a fila já está bem maior. Dois homens entram em conflito por uma ficha. Um deles, o João (nome fictício), que vive em situação de rua, recebe refeições do programa da Prefeitura desde o início e faz reclamações quanto à qualidade e quantidade das refeições. 

“A comida era melhor. Esse feijão com arroz que estou comendo aqui parece que foi feito só com água e sal, a carne não tem sabor. Desde dezembro, caiu muito a qualidade das marmitas, mas essa é a minha única opção para almoçar. À noite, se eu tiver sorte, pego marmitas que voluntários doam e que são melhores que esta”, disse João, sentado na calçada, fazendo do chão a sua mesa.  

Davi Barretos também aguardava na fila com a ficha de nº 508.  Desempregado e em situação de rua há três meses, está abrigado com vaga temporária em um centro de acolhida que fica no bairro do Jabaquara. Ele diz que anda pela cidade de carona em busca de trabalhos. Aos 40 anos, ele é eletricista e está fora do mercado de sua profissão há mais de dois anos. Não recebe benefício algum do governo.

Naquele dia, ele aproveitou que estava em Santo Amaro procurando “bicos” para sobreviver e parou para garantir uma refeição. “Deveriam cuidar melhor dessas coisas que nos ajudam. Poderiam melhorar as refeições e os centros de acolhida, também deveriam dar refeições para quem tem vaga temporária, como é o meu caso. Eu procuro trabalho, alimentação e tenho que estar às 17h lá no albergue, caso contrário, eu perco a vaga”, desabafou Barretos.

Na Praça Floriano Peixoto, em Santo Amaro, centenas de pessoas se aglomeram para conseguir uma refeição, para muitas a única do dia

NO MAPA DA FOME

De acordo com pesquisa divulgada em novembro de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil atingiu 13,7 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza em 2019. O País havia saído do Mapa da Fome em 2014. Com esse novo índice, estima-se que 6,5 milhões de pessoas passaram para a linha de pobreza em 2020. 

“Nós retrocedemos bastante em muitos aspectos no País. Na segurança alimentar, o fato de o Governo Federal ter extinguido o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Conseas) destruiu toda a relação da sociedade civil no âmbito de construir políticas públicas”, diz Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor executivo da organização Ação da Cidadania.

Rodrigo Afonso coordena o projeto do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que lutou para erradicar a fome no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990. Em 2017, a Ação da Cidadania reativou a campanha Natal Sem Fome, que por quase uma década ficou obsoleta. Em razão do aumento da pobreza nos últimos três anos, a campanha precisou ser intensificada em 2020 para ajudar os mais pobres na pandemia do coronavírus. 

Com o desemprego em alta e o fim de programas sociais de emergência, Kiko avalia que, em curto ou médio prazo, não haverá uma melhora na segurança alimentar. Ao contrário, diz ele, 2021 tende a ser mais trágico que 2020 sem os recursos do auxílio emergencial para movimentar a economia. 

A FILA CONTINUA…

Enquanto aguardava chegar outra remessa de marmitas, Francisca Maria, 62, esperava conseguir duas delas. As refeições eram para o neto que estava em casa. Ela precisa se deslocar do Grajaú até o Largo Treze ao menos duas vezes por semana para obter alimentos e doações para sobreviver.

Ao menos duas vezes na semana, Francisca Maria tenta conseguir alimentos para si e a família

Alguns metros à frente de Francisca, sentada no chão, Maria Cristina dos Santos Silva, 47, espera por sua marmita. Com problemas de saúde em decorrência de um acidente vascular e dificuldades para se locomover, ela aguarda com ansiedade o resultado da perícia médica, na esperança de ter o direito a benefícios assistenciais do governo. Ela recebeu o auxílio emergencial que era destinado apenas para pagar o aluguel. Agora, depende da ajuda de familiares, amigos e das marmitas da Prefeitura. Ela diz que está sem esperança e que pretende voltar para sua cidade natal, localizada no estado de Alagoas. Um de seus filhos morreu em decorrência da COVID-19. 

Eram 11h35 quando Junior (nome fictício) teve a sorte de receber a última marmita de um total de 900 distribuídas naquele dia. “Graças a Deus, eu consegui. Não preciso gastar meu dinheirinho”, disse, levantando as mãos para o céu. Junior está afastado do trabalho por problemas de saúde, tem receio de ser despedido e o pouco dinheiro que tem é para pagar o aluguel. Há duas semanas, frequenta a fila de marmitas para economizar, porque sente medo de morar na rua. 

Os movimentos da população em situação de rua da capital paulista têm feito constantes reivindicações, entre elas as referentes a questões de segurança alimentar. O número de pessoas morando nas calçadas de São Paulo aumentou consideravelmente durante a pandemia, e as políticas públicas emergenciais da Prefeitura não supriram as necessidades básicas.

Questionada sobre a continuidade e a redução de marmitas entregues no ponto de Santo Amaro, a Prefeitura de São Paulo, por meio da SMDHC, informou que o projeto Cozinha Cidadã será executado no período de pandemia decretado na cidade e que os contratos com os restaurantes credenciados estão sendo renovados. 

Com o fim do auxílio emergencial, Maria Cristina ingressou na fila da marmita para se alimentar

AÇÃO CIDADANIA

Em 2020, a Ação da Cidadania distribuiu na região metropolitana de São Paulo e em todo o País 10 mil toneladas de alimentos. Kiko diz que todos da organização estão conscientes de que até o ano de 2023 o País viverá sob emergência da segurança alimentar e preparam campanhas para arrecadar alimentos. Afinal, como dizia Betinho, “Quem tem fome, tem pressa”. 

Além da campanha para arrecadar alimentos, a Ação da Cidadania lançou em 2020 a Agenda Betinho, um documento que elenca 40 propostas que têm por objetivo contribuir com o fortalecimento de políticas públicas municipais de segurança alimentar e nutricional em todo o País.

“A fome não é somente uma consequência da pandemia, é reflexo também do desmonte de políticas públicas. A sociedade tem negligenciado a segurança alimentar por muitos anos. Não podemos nos acostumar com a questão da fome. A fome é a pior indignidade que o ser humano pode ter. Com fome, não fazemos nada. Precisamos agir com políticas públicas para eliminar essa chaga com que convivemos há décadas neste País”, concluiu o diretor executivo da Ação da Cidadania. 

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