Há 200 anos, o Divino Espírito Santo encontra morada na Freguesia do Ó

Desde 1821, festividade mobiliza famílias do bairro, em especial os ‘divineiros’, em uma tradição que atravessa gerações

Imperador e capitão-do-mastro, com suas respectivas esposas; ao centro, a alferes da 200a Festa e Novena do Divino Espírito Santo (fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO)

Na Solenidade de Pentecostes, no domingo, 23, foi concluída a 200a Festa e Novena do Divino Espírito Santo, na Paróquia Nossa Senhora da Expectação, uma tradição que, passada de geração a geração, envolve toda a comunidade paroquial e os moradores do bairro da Freguesia do Ó.

O primeiro registro que se tem documentado sobre a festa é de 17 de dezembro de 1821, e revela que o então vigário da Freguesia do Ó, Padre Feliciano Cavalheiro Leite, pediu ao bispo diocesano da época, Dom Mateus de Abreu Pereira, a autorização para realizar a Festa do Divino Espírito Santo. Por esta razão, neste ano, a comunidade paroquial comemorou o bicentenário da festividade.

“A festa é uma tradição, mas, acima de tudo, uma expressão de fé. Não podemos deixar que seja vista apenas por seu aspecto folclórico”, afirmou o Padre Carlos Alves Ribeiro, Pároco. “Há um grande interesse, especialmente por causa dos símbolos, mas, sobretudo pela presença do Espírito Santo, que, com leveza, sutileza e beleza, envolve as pessoas e faz esta festa perdurar por tantos anos”, destaca.

A fé que atravessa gerações

Maria Lúcia Miserochi de Oliveira Lins é uma das pessoas que preservam e transmitem as tradições relacionadas à Festa do Divino, algo que aprendeu com o pai, já falecido. Junto com outros ‘divineiros’ e o Pároco, ela recebeu a reportagem do O SÃO PAULO na matriz e detalhou aspectos da festividade, que foi trazida ao Brasil pelos portugueses, onde já era uma tradição na Idade Média.

“A responsável por levar a festa a Portugal foi a Rainha Isabel, esposa de Dom Diniz, que entregou seu cetro e sua coroa ao Divino Espírito Santo, pedindo a paz para seu país que estava em guerra. Vem daí a tradição de a família imperial se despojar de suas prerrogativas, destinando-as a um local sempre ricamente ornamentado, onde ficam a imagem do Divino Espírito Santo, o cetro e a coroa, simbolizando que é Dele, do Espírito Santo, o reinado durante a festa”, explicou Lúcia, como é mais conhecida.

Maria Lúcia Miserochi (arquivo pessoal)

A festividade é sempre iniciada com a novena. No começo de cada missa, há a entrada do cortejo imperial – alferes (porta-bandeira), capitão-do-mastro e imperador – e ao término das celebrações o cortejo sai pelo corredor central, quando os fiéis podem tocar a Bandeira do Divino.

No domingo da Ascensão do Senhor, no Largo da Matriz, acontece o levantamento do mastro com a Bandeira e a imagem que representa o Espírito Santo, além de um saquinho com os pedidos dos fiéis. Excepcionalmente este ano, a fim de evitar aglomerações, o levantamento ocorreu no sábado, 15. É tradição que no Domingo da Festa do Divino ocorra um almoço comunitário, algo que, desta vez, também foi substituído por uma carreata solidária, no dia 23, na qual se arrecadou alimentos, que serão destinados a famílias carentes.

‘Escolhidos pelo Divino’

É parte da tradição da festa que na missa solene de encerramento haja o sorteio dos festeiros do próximo ano – alferes, capitão-do-mastro e imperador –, que estarão na linha de frente de organização da festa.

“As pessoas sorteadas têm a convicção de que foram escolhidas pelo Espírito Santo”, comenta Padre Carlos, detalhando ainda o sentido do Império. “É o Divino que impera, guia, conduz e ilumina a Igreja. Por isso, na festa se monta, em uma sala, o Império do Divino, com a Bandeira, a coroa e uma imagem do Divino Espírito Santo”, explica. Este ano, o sorteio dos novos festeiros ocorrerá em data posterior e não houve a montagem da sala do Império, a fim de evitar aglomerações.

Há, ainda, os guardiões da Bandeira, ou seja, 21 famílias que, ao longo do ano, realizam momentos de evangelização pelo bairro. “Fazemos reuniões com os festeiros e os guardiões em casas de família, rezamos o Terço e a Coroa do Espírito Santo. Os guardiões com suas bandeiras visitam os hospitais, os doentes, ou seja, é um trabalho de fé”, detalha Lúcia.

Uma tradição que evangeliza

Na Solenidade de Pentecostes de 2019, foram sorteados – ou “escolhidos pelo Divino” – como festeiros Vagner Antonio de Lima (imperador), Milton Pereira de Brito (capitão) e Solange Bento da Silva (alferes). Na ocasião, não imaginavam que teriam as funções por dois anos, já que em 2020 não houve novo sorteio, em razão da festa ocorrer apenas com missas transmitidas on-line.

Como alferes – atribuição que na Paróquia Nossa Senhora da Expectação é destinada apenas às mulheres –, Solange manteve a Bandeira do Divino. “Quando meus irmãos e sobrinhos vão à minha casa, sempre fazemos uma oração em frente à Bandeira, que ficou na sala. Quando rezávamos os Terços na casas, eu também levava a Bandeira”, recorda.

Padre Carlos Alves

O capitão-do-mastro se responsabiliza por guardar a imagem que representa o Espírito Santo. Brito conta que muitas pessoas desejam ver a imagem e fazem pedidos de oração. Ao longo da novena, é o capitão que conduz a Bandeira. “Quando você entra na igreja e passa com a Bandeira, vê que as pessoas se emocionam, querem tocá-la, mostram uma fé tão grande, que isso repercute em você”, relata, emocionado.

A emoção também é perceptível no olhar de Lima, ao recordar quando foi sorteado para ser o imperador em 2019. Durante a novena, ele conduz a coroa, o cetro e o anel, e ao longo do ano é o grande motivador para que a festa aconteça. “O imperador também estimula a fé nas pessoas e lhes mostra que é o Espírito Santo que dá a vida. O Espírito é sinal de esperança. Eu senti neste período que o Divino me levou a acreditar que o amanhã será melhor”, comenta.

Padre Carlos destaca que a realização da festa só é possível graças ao engajamento dos fiéis e que ajuda a atrair mais pessoas para a vivência da fé: “Há festeiros que não costumavam vir à missa com frequência ou participar ativamente da comunidade, mas após a festa se encantam e permanecem na igreja”.

OS SÍMBOLOS DA FESTA

– Pomba Branca:  é a representação do Espírito Santo.


– Bandeira:  sempre vermelha, e com uma representação da pomba branca ao centro, tem ainda muitas fitas laterais.


– Mastro: é afixado no Largo da Matriz (em frente à igreja), com a Bandeira do Divino e a imagem do Espírito Santo enfeitada com flores e fitas. O mastro sinaliza que a Igreja está em festa, aguardando a vinda do Espírito Santo.


– Império: é o altar montado fora da igreja, sempre enfeitado, onde fica o Divino, a Bandeira, a coroa e o cetro.


– “Rosquinhas do Divino”: é um pão de forma circular. Depois de abençoadas, são guardadas junto com os alimentos, como símbolo de fartura e abundância.


– Coroa, cetro e anel – simbolizam a nobreza do imperador da festa, o Espírito Santo.


(Com informações de Maria Lúcia Miserochi de Oliveira Lins)

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