Nem os maiores sábios, antropólogos, sociólogos ou poetas conseguiram dar à amizade uma definição melhor do que a descrita nas Sagradas Escrituras: “Quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro” (cf. Ecl 6,14).
A Campanha da Fraternidade deste ano reitera o valor dessa relação humana como fonte de unidade e santificação do homem: “Vós sois todos irmãos e irmãs”, proclama seu lema, não como recomendação para livre escolha, mas como declaração da fraternidade como elemento central da natureza humana.
O próprio termo “Amizade Social” é um resgate do significado dessas palavras, tão diluídas no contexto moderno das experiências virtuais. Amigos foram reduzidos a “seguidores” e “fazer uma social” se tornou sinônimo de “estar presente no coletivo”. Contudo, a amizade social é compromisso que nos leva sempre ao encontro do próximo, um encontro que resgata, transforma e promove o bem. “O amor ao outro impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”, recomenda o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (FT 94), que inspirou o tema da Campanha da Fraternidade.
AMIZADE QUE REFORMA
Essa amizade que transforma foi vivida claramente entre Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz. Quando se conheceram, Teresa aos 52 anos e João com 25, o frade estava por trocar o Carmelo pela Cartuxa, onde, segundo ele, “a oblação de si mesmo seria maior”. Mas atendeu ao apelo da Madre para ser sua própria voz na reforma no ramo masculino do Carmelo.
A configuração de suas almas foi tamanha que Teresa escreve às suas filhas espirituais recomendando que aproveitem a presença do Frei João, pois estar com ele era como estar com ela mesma: “Estejam certas de que eu estimaria ter por aqui a meu Padre Frei João da Cruz, que deveras é pai de minha alma e um daqueles que mais bem me faziam com sua comunicação. Busquem-no, minhas filhas, com toda a confiança, pois asseguro-lhes de que a podem ter como comigo mesma”.
A amizade de Santa Teresa e São João foi fundamental para a reforma do Carmelo, que hoje nos serve de metáfora, pois a amizade alicerçada em Deus é, senão, uma reforma interior na qual se desinstala o amor a si mesmo e a “cultura do confronto” e se constrói proximidade e encontro como escreve o Papa Francisco: “O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas a proximidade, a cultura do encontro, sim. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim” (FT 30).
É MELHOR 2 DO QUE 1
Dois milênios antes de Santa Teresa e São João viverem esse modelo de amizade, o Rei Salomão já havia recomendado a vida comum como segredo para se manter de pé: “Valem mais dois do que um sozinho, pois o esforço de dois consegue melhores resultados. Se caírem, um ajuda a levantar o outro, ao passo que se cai o que está só, não há ninguém para o levantar” (cf. Ecl 4,9-10).
Cristina Helena foi esse braço que ergueu Patrícia, quando caída na tristeza e na solidão. Graças a essa amizade uma vida foi salva. Cristina faz parte da ONG “Filhos da Luz” e foi procurada por Patrícia, uma mulher que passava por problemas familiares, perante os quais decidiu que não teria o bebê que descobrira gestar. Estava decidida a abortá-lo. As conversas ao telefone e por mensagens estabeleceram entre as duas um elo de confiança e apoio que ajudou Patrícia a compreender algo fundamental para enfrentar o desafio que estava vivendo: “Você não está sozinha”.
Esse suporte e apoio fez com que Patrícia redescobrisse seu valor como mulher e como filha de Deus, apropriação que a encorajou para assumir também a nova missão na maternidade, fazendo com que desistisse do aborto: “Deixei ela esvaziar bastante, disponibilizei-me em horários alternativos porque percebi que além do aborto havia ideação suicida. As conversas foram avançando e com o tempo a confiança foi gerando tranquilidade e as coisas começaram a mudar”.
Cristina encaminhou Patrícia para profissionais específicos que também colaboraram com o processo de fortalecimento dela, e, assim, houve uma gestação tranquila e o nascimento que encheu de alegria toda a família.
SÍNDROME DE CAIM
A Campanha da Fraternidade alerta para a presença de uma “síndrome de Caim”, uma situação de egoísmo e desprezo pelo outro, que desobriga da responsabilidade fraterna, como expressado na resposta de Caim ao ser interrogado por Deus sobre o paradeiro de seu irmão: “Acaso sou eu o responsável pelo meu irmão?” (cf. Gn 4,1-9). A CF 2024 busca propor uma nova versão deste versículo, promovendo o surgimento de um amor autêntico e concreto, nas formas mais nobres de amizade.
Mergulhada na certeza de que a amizade em Deus resgata e transforma, Bárbara Silva, discípula da Comunidade de Aliança Cristo Libertador, dedicou-se inteiramente a Carla (nome fictício), uma adolescente que estava internada em uma unidade da Fundação Casa, local para o cumprimento de medidas socioeducativas por crianças e adolescentes infratores.
A menina vivenciou literalmente o pecado de Caim, participando do homicídio do próprio irmão. No entanto, Deus tinha reservado para ela um desfecho cheio de amor e misericórdia. Depois de cumprir o período de internação e não tendo para onde ir, pois nem sua família a recebeu, a jovem foi acolhida na casa de restituição da comunidade, onde, mais do que um abrigo, encontrou pessoas dispostas a acolhê-la e ressignificar o sentido de irmãos.
Bárbara foi quem esteve mais próxima de Carla, orientando-a e ajudando no processo para superar seus traumas: “No início foi muito difícil, pois ela quase não falava e mudava muito de humor. Passei três madrugadas acordada ao lado dela enquanto ela chorava, se agredia e dizia que ia se matar. Ela estava ferida pela culpa e revolta. Não queria me ouvir, nem falar, nem aceitava gestos de carinho. O que fiz foi um diálogo indireto: pedi autorização a ela para rezar de longe e o fazia em voz alta, falando palavras direcionadas a Deus, mas que tinham como destinatário sublimar seu coração. Eu sabia que ela precisava ouvir palavras de perdão, de que era amada e que não estava sozinha. Aos poucos, ela se acalmava e voltava ao estado normal.”
O desgaste físico e emocional dessa amizade muitas vezes levou Bárbara a pensar que não seria capaz de continuar próxima a Carla, mas ela sempre encontrava coragem no amor. “Eu acreditei que Deus tinha me escolhido para ajudá-la e continuei”.
Hoje, Carla é uma pessoa completamente transformada. Recebeu auxílio acadêmico com reforço escolar e até aulas de inglês. Realizou sua primeira Comunhão e Crisma, oportunidades que aproveitou para expressar em gratidão o carinho que recebeu de Bárbara, a quem convidou para ser sua madrinha. Atualmente, as duas compartilham o mesmo lar na Casa de Missão da Comunidade, dedicando suas vidas ao cuidado e à restauração da dignidade de muitos outros jovens como filhos de Deus.
Gostei do texto! Várias reflexões! Parabéns, Tatianna Porto!