CF 2024: ‘Quem encontrou um amigo,encontrou um tesouro’

Nem os maiores sábios, antropólogos, sociólogos ou poetas conseguiram dar à amizade uma definição melhor do que a descrita nas Sagradas Escrituras: “Quem encontrou um amigo, encontrou um te­souro” (cf. Ecl 6,14).

A Campanha da Fraternidade deste ano reitera o valor dessa relação humana como fonte de unidade e santificação do homem: “Vós sois todos irmãos e irmãs”, proclama seu lema, não como recomen­dação para livre escolha, mas como de­claração da fraternidade como elemento central da natureza humana.

O próprio termo “Amizade Social” é um resgate do significado dessas palavras, tão diluídas no contexto moderno das ex­periências virtuais. Amigos foram reduzi­dos a “seguidores” e “fazer uma social” se tornou sinônimo de “estar presente no co­letivo”. Contudo, a amizade social é com­promisso que nos leva sempre ao encon­tro do próximo, um encontro que resgata, transforma e promove o bem. “O amor ao outro impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”, recomenda o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (FT 94), que inspirou o tema da Campanha da Fraternidade.

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AMIZADE QUE REFORMA

Essa amizade que transforma foi vivi­da claramente entre Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz. Quando se conheceram, Teresa aos 52 anos e João com 25, o frade estava por trocar o Carmelo pela Cartuxa, onde, segundo ele, “a oblação de si mesmo seria maior”. Mas atendeu ao apelo da Ma­dre para ser sua própria voz na reforma no ramo masculino do Carmelo.

A configuração de suas almas foi ta­manha que Teresa escreve às suas filhas espirituais recomendando que aproveitem a presença do Frei João, pois estar com ele era como estar com ela mesma: “Estejam certas de que eu estimaria ter por aqui a meu Padre Frei João da Cruz, que deveras é pai de minha alma e um daqueles que mais bem me faziam com sua comuni­cação. Busquem-no, minhas filhas, com toda a confiança, pois asseguro-lhes de que a podem ter como comigo mesma”.

A amizade de Santa Teresa e São João foi fundamental para a reforma do Carme­lo, que hoje nos serve de metáfora, pois a amizade alicerçada em Deus é, senão, uma reforma interior na qual se desinstala o amor a si mesmo e a “cultura do confron­to” e se constrói proximidade e encontro como escreve o Papa Francisco: “O isola­mento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o ca­minho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas a proximidade, a cul­tura do encontro, sim. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim” (FT 30).

É MELHOR 2 DO QUE 1

Dois milênios antes de Santa Teresa e São João viverem esse modelo de amiza­de, o Rei Salomão já havia recomendado a vida comum como segredo para se manter de pé: “Valem mais dois do que um sozi­nho, pois o esforço de dois consegue me­lhores resultados. Se caírem, um ajuda a levantar o outro, ao passo que se cai o que está só, não há ninguém para o levantar” (cf. Ecl 4,9-10).

Cristina Helena foi esse braço que er­gueu Patrícia, quando caída na tristeza e na solidão. Graças a essa amizade uma vida foi salva. Cristina faz parte da ONG “Filhos da Luz” e foi procurada por Patrí­cia, uma mulher que passava por proble­mas familiares, perante os quais decidiu que não teria o bebê que descobrira gestar. Estava decidida a abortá-lo. As conversas ao telefone e por mensagens estabelece­ram entre as duas um elo de confiança e apoio que ajudou Patrícia a compreen­der algo fundamental para enfrentar o desafio que estava vivendo: “Você não está sozinha”.

Esse suporte e apoio fez com que Patrí­cia redescobrisse seu valor como mulher e como filha de Deus, apropriação que a encorajou para assumir também a nova missão na maternidade, fazendo com que desistisse do aborto: “Deixei ela esvaziar bastante, disponibilizei-me em horários alternativos porque percebi que além do aborto havia ideação suicida. As conversas foram avançando e com o tempo a con­fiança foi gerando tranquilidade e as coisas começaram a mudar”.

Cristina encaminhou Patrícia para profissionais específicos que também co­laboraram com o processo de fortaleci­mento dela, e, assim, houve uma gestação tranquila e o nascimento que encheu de alegria toda a família.

SÍNDROME DE CAIM

A Campanha da Fraternidade aler­ta para a presença de uma “síndrome de Caim”, uma situação de egoísmo e despre­zo pelo outro, que desobriga da respon­sabilidade fraterna, como expressado na resposta de Caim ao ser interrogado por Deus sobre o paradeiro de seu irmão: “Aca­so sou eu o responsável pelo meu irmão?” (cf. Gn 4,1-9). A CF 2024 busca propor uma nova versão deste versículo, promo­vendo o surgimento de um amor autên­tico e concreto, nas formas mais nobres de amizade.

Mergulhada na certeza de que a ami­zade em Deus resgata e transforma, Bár­bara Silva, discípula da Comunidade de Aliança Cristo Libertador, dedicou-se in­teiramente a Carla (nome fictício), uma adolescente que estava internada em uma unidade da Fundação Casa, local para o cumprimento de medidas socioeducativas por crianças e adolescentes infratores.

A menina vivenciou literalmente o pecado de Caim, participando do homi­cídio do próprio irmão. No entanto, Deus tinha reservado para ela um desfecho cheio de amor e misericórdia. Depois de cumprir o período de internação e não tendo para onde ir, pois nem sua família a recebeu, a jovem foi acolhida na casa de restituição da comunidade, onde, mais do que um abrigo, encontrou pessoas dis­postas a acolhê-la e ressignificar o sentido de irmãos.

Bárbara foi quem esteve mais próxi­ma de Carla, orientando-a e ajudando no processo para superar seus traumas: “No início foi muito difícil, pois ela quase não falava e mudava muito de humor. Passei três madrugadas acordada ao lado dela enquanto ela chorava, se agredia e dizia que ia se matar. Ela estava ferida pela culpa e revolta. Não queria me ouvir, nem falar, nem aceitava gestos de carinho. O que fiz foi um diálogo indireto: pedi autorização a ela para rezar de longe e o fazia em voz alta, falando palavras direcionadas a Deus, mas que tinham como destinatário sublimar seu coração. Eu sabia que ela precisava ou­vir palavras de perdão, de que era amada e que não estava sozinha. Aos poucos, ela se acalmava e voltava ao estado normal.”

O desgaste físico e emocional des­sa amizade muitas vezes levou Bárbara a pensar que não seria capaz de continuar próxima a Carla, mas ela sempre encon­trava coragem no amor. “Eu acreditei que Deus tinha me escolhido para ajudá-la e continuei”.

Hoje, Carla é uma pessoa completa­mente transformada. Recebeu auxílio aca­dêmico com reforço escolar e até aulas de inglês. Realizou sua primeira Comunhão e Crisma, oportunidades que aproveitou para expressar em gratidão o carinho que recebeu de Bárbara, a quem convidou para ser sua madrinha. Atualmente, as duas compartilham o mesmo lar na Casa de Missão da Comunidade, dedicando suas vidas ao cuidado e à restauração da dignidade de muitos outros jovens como filhos de Deus.

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