Determinação e confiança na providência divina: os ensinamentos de 5 santos e beatos negros

No mês em que se comemora no Brasil o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, o jornal O SÃO PAULO recorda a biografia de cinco santos e beatos negros que, em diferentes épocas e com os desafios próprios do momento histórico em que viveram, evangelizaram a partir do amor a Cristo e do testemunho e coerência de vida cristã.

Santa Efigênia e a difusão do Cristianismo entre os pagãos

Nos primeiros anos da era cristã, o pequeno reino de Núbia, no atual território da Etiópia, foi ambiente de missão para o apóstolo Mateus, poucos anos após a Ascensão do Senhor aos Céus. Em um território pagão, o apóstolo não foi bem recebido inicialmente, mas suas palavras tocaram o coração e alma da princesa negra Efigênia, filha do casal real Eggipus e Eufenisa. Efigênia passou a propagar a fé cristã, atitude que desagradou a alguns sacerdotes pagãos que tinham grande influência sobre o povo. Eles convenceram os habitantes, incluindo o rei Eggipus, de que Mateus insultava os seus deuses e que estes só não fariam mal ao povo se Efigênia fosse oferecida em sacrifício.

A princesa, então, foi capturada para ser queimada viva. Relata-se, porém, que enquanto a fogueira era preparada, ela consagrou-se a Deus, e quando as chamas estavam altas, gritou pelo nome de Jesus e um Anjo do céu veio para libertá-la.

Após este milagre, Efigênia empenhou-se ainda mais para a conversão dos pagãos de Núbia, agora tendo o apoio de seus pais, que assim como ela e seu irmão, Efrônio, foram batizados por Mateus. Ela também fundou um convento. A princesa, porém, passou a sofrer ainda mais resistências, especialmente de seu tio, Hitarco, que assumira o reino após a morte de Eggipus. O tio mandou incendiar o convento, mas Efigênia e as demais consagradas sobreviveram. Hitarco, então, fugiu do reino e o irmão da princesa foi proclamado rei. Com isso, Efigênia pôde propagar a fé cristã em um ambiente de paz até a sua morte.

A memória litúrgica da Santa é celebrada em 21 de setembro, mesma data de São Mateus. Santa Efigênia é invocada como intercessora dos que buscam a casa própria e também como protetora contra os incêndios, razão pela qual na maioria de suas iconografias é representada segurando uma igreja ou uma casa em chamas.

São Benedito: o filho de escravos que não poupou esforços em favor do próximo

No começo do século XVI, o casal Cristovão Manasceri e Diana Larcan, nascido na Etiópia, foi levado como escravo para Messina, na ilha da Sicília, Itália. Diante da sofrida condição de vida, não desejavam ter filhos, mas mudaram de ideia quando o senhor que os mantinha em escravidão prometeu-lhes a liberdade se gerassem uma criança. Em 1526 nasceu Benedito, libertado da condição de escravo ainda na infância, junto com seus pais, que desde os primeiros anos de vida o educaram na fé cristã.

Perto dos 20 anos de idade, Benedito foi alvo de insultos racistas em razão de sua pele negra, mas não reagiu de modo intempestivo. O fato foi testemunhado pelo Frei Jerônimo Lanza, líder dos eremitas da Irmandade de São Francisco de Assis, que convidou o jovem a ingressar na congregação. Tempos depois, estes eremitas tiveram de se juntar a outras ordens franciscanas já existentes, e Benedito foi para o Mosteiro de Santa Maria de Jesus, em Palermo, com os franciscanos capuchinhos. Sua função inicial foi de cozinheiro. Após um período de quatro anos em outro convento, retornou, e ali permaneceu até a morte, em 4 de abril de 1589, aos 63 anos de idade.

Relata-se que o Santo teve uma intensa vida de oração, obediência a seus superiores, alegria na realização das tarefas diárias e que, mesmo analfabeto, recorrentemente muitas pessoas o procuravam para conselhos ou pedidos de oração.

Na Irmandade, de cozinheiro passou a mestre de noviços e, depois, tornou-se superior do mosteiro. Terminado o período dessa função, voltou a ser cozinheiro até o fim da vida. Ele sempre se preocupou com os mais pobres e famintos, e muitas das vezes ofertava-lhes os mantimentos que havia no Convento.

São Benedito foi canonizado pelo Papa Pio VII em 24 de maio de 1807. Além de patrono da cidade de Palermo, é invocado como padroeiro dos afro-americanos, dos cozinheiros e nutricionistas. No Brasil, sua memória litúrgica é celebrada em 5 de outubro.

Luciney Martins/O São Paulo

Beata Nhá Chica fez de sua humilde condição uma via de santidade

“Com a Nossa Autoridade Apostólica, concedemos que a Venerável Serva de Deus, Francisca de Paula de Jesus, conhecida como Nhá Chica, leiga, virgem, mulher de assídua oração, perspicaz testemunha da misericórdia de Cristo para com os necessitados do corpo e do espírito, doravante seja chamada Beata”.

Este trecho da carta apostólica do Papa Francisco lida na cerimônia de beatificação de Nhá Chica, em maio de 2013, sintetiza o que foi a vida desta bem-aventurada brasileira, filha de mãe escrava, nascida em 1808, em São João del Rei (MG).

Nhá Chica foi batizada em 1810 e aprendeu de sua mãe as primeiras orações e devoções. Tempos depois, a família mudou-se para Baependi, também em Minas Gerais. Entretanto, sua mãe adoeceu e morreu. Antes, porém, recomendou à filha que sempre praticasse a caridade e perseverasse na fé.

Órfã, Nhá Chica morou por muito tempo sozinha em uma casa na periferia da cidade, e ainda jovem já tinha a fama de cuidado com os mais pobres. Quem se aproximava da “Tia Chica”, como passou a ser conhecida, sempre podia contar com uma oração de intercessão ou rezar com ela o Rosário, além de receber algum alimento para saciar a fome.

Ela recusou muitos pedidos de casamento, optando, assim, por uma vida filial a Jesus, mas sem ingressar em uma ordem religiosa. Sua humilde casa virou ponto de encontro para momentos de oração e para conforto espiritual.

Com a morte de um de seus irmãos, Nhá Chica recebeu uma fortuna e distribuiu quase tudo aos mais pobres: reservou apenas uma pequena quantia para construir uma capela dedicada à Imaculada Conceição, onde ela foi sepultada ao falecer em 1895, aos 87 anos de idade. O local primeiro foi conhecido por “Igreja de Nhá Chica”, mas após reformas tornou-se o Santuário Nossa Senhora da Conceição. A memória litúrgica de Nhá Chica é celebrada em 14 de junho

Santa Bakhita perdoou a seus malfeitores e encontrou o verdadeiro Senhor

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Nascida no Sudão, no continente africano, em 1869, Santa Bakhita foi raptada aos 7 anos de idade e negociada com escrava, passando por incontáveis sofrimentos físicos e humilhações nas mãos de diferentes “senhores”.

Quando foi comprada por Calixto Legnani, um cônsul italiano, a vida dela melhorou: ainda que sendo serviçal da família, já não era mais tratada com chicotadas e insultos. Quando os Legnani tiveram de retornar a Gênova, na Itália, levaram Bakhita, além de um amigo do cônsul: Augusto Michieli. A esposa deste pediu que Bakhita fosse morar com eles. A jovem, então, partiu com a nova família para Veneza, tornando-se a babá da filha do casal, Mimina. Tempos depois, Michieli e a sua esposa, Maria Turina, se mudaram para Suakin, no Mar Vermelho, e deixaram Bakhita e Minina confiadas às Irmãs Canossianas.

A partir de então, Bakhita encontrou-se com seu verdadeiro Senhor, o “Patrão dessas coisas tão bonitas”, a quem ela tanto desejava descobrir quando olhava para o sol, a lua e as estrelas. Após alguns meses de preparação com as Irmãs, recebeu os sacramentos da iniciação cristã e um novo nome: Josefina. Quando a esposa de Michieli regressou para buscar a filha, Bakhita decidiu que iria permanecer com as religiosas.

A jovem fez os votos de consagração em 8 de dezembro de 1896, no Instituto de Santa Madalena de Canossa. Foram mais de 50 anos de vida religiosa, atuando como cozinheira, bordadeira, sacristã e porteira, função esta que permitia um contato mais próximo e sorridente com as crianças que frequentavam a escola do Instituto.

A todos também testemunhou a capacidade de perdoar e não se cansava de dizer que superou todo o ódio por aqueles que lhe fizeram escrava: “Se encontrasse aqueles traficantes de escravos que me raptaram, e também aqueles que me torturaram, me ajoelharia e beijaria as suas mãos, porque se não acontecesse tudo isso, não seria cristã e religiosa”.

Na velhice, mesmo diante das intensas dores, sempre respondia sorridente a quem lhe perguntava como estava: “Como o Patrão quer”.

Irmã Josefina Bakhita faleceu em 8 de fevereiro de 1947, já com a fama de “Santa Irmã Morena”. Foi beatificada por São João Paulo II em 1992, e canonizada pelo mesmo Pontífice no ano 2000, após o reconhecimento de sua intercessão para a cura da brasileira Eva Tobias da Costa, que por causa de diabetes estava com uma grande ferida na perna que não cicatrizava de modo algum. A memória litúrgica da Santa é celebrada em 8 de fevereiro. Na Arquidiocese de São Paulo existe, desde 2021, a Capelania Pessoal Santa Josefina Bakhita para os católicos nigerianos.

Beato Padre Victor: negro e escravo, ele alcançou o sonho de ser sacerdote

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Estudar, ocupar um cargo público ou mesmo ser padre era algo inimaginável para os negros brasileiros na época da escravidão. Foi nesse contexto social que nasceu Francisco de Paula Victor, em 12 de abril de 1827, em Campanha (MG), filho da escrava negra Lourença Justiniana de Jesus.

Graças à sua madrinha de Batismo, Marianna de Santa Bárbara Ferreira, Victor aprendeu a ler e escrever e na juventude iniciou o aprendizado no ofício de alfaiate. E foi a seu professor de alfaiataria que ele revelou por primeiro o desejo de ser padre.

O Pároco de Campanha, Padre Antonio Felipe de Araujo, soube deste sonho, e após a autorização de Dom Antônio Ferreira Viçoso, então bispo de Mariana (MG), o jovem Victor foi admitido no seminário. Enfrentou as esperadas resistências de ser o primeiro seminarista negro da história daquela diocese, mas com o apoio de seus formadores e do bispo, foi ordenado sacerdote em 14 de junho de 1851. A ordenação, porém, não evitou que vivenciasse episódios de racismo em Campanha, como o de pessoas brancas que se recusavam a receber a Comunhão de suas mãos.

No ano seguinte, Padre Victor foi enviado como vigário paroquial à cidade de Três Pontas (MG). Em um local onde os negros sempre eram os escravos, a maioria dos senhores fazendeiros demorou a aceitar o novo padre: piadas ofensivas e missas com a igreja praticamente vazia foram algumas das coisas com as quais Padre Victor teve de lidar. Pouco a pouco, porém, com humildade e paciência, passou a ser respeitado pelos fiéis e apresentou-lhes o amor sem limites de Jesus por todas as pessoas.

Padre Victor também ajudou a construir um colégio na cidade, onde foi professor, abrindo as portas da instituição para que brancos e negros, ricos e pobres estudassem no mesmo ambiente. O zelo pelos mais pobres também marcou sua biografia. Não era incomum que desse comida, itens da casa paroquial e até dinheiro a quem lhe pedisse. No fundo da casa, também cuidava de um leproso que havia sido rejeitado pela família. Padre Victor, o primeiro sacerdote negro ex-escravo do Brasil, faleceu em Três Pontas em 23 de setembro de 1905, aos 53 anos de idade, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Sua memória litúrgica é celebrada em 23 de setembro.

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