O ‘jogo é duro’ contra o racismo no futebol

O preconceito racial ‘ataca’ em campo, nas arquibancadas e nos bastidores do esporte mais popular do País, conforme dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol

Crédito: Londrina EC

Foram quase três meses sem bola rolando nos gramados do Brasil e praticamente uma temporada inteira sem torcedores nos estádios. Mesmo assim, em 2020, ao menos 31 casos de ataques racistas foram registrados no ambiente do futebol no País – 17 em estádios, dez na internet e quatro em outros locais – conforme dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, publicados em outubro.

A quantidade de denúncias foi 53% menor que as registradas em 2019, quando aconteceram 67 casos de racismo no futebol brasileiro, um recorde nos registros do Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, cuja primeira edição é referente ao ano de 2014. Até o início do mês passado, o Observatório já contabilizava 41 ocorrências no ano de 2021.

“Ao olhar os números do relatório de 2020, pode se pensar que houve uma diminuição das denúncias de racismo no futebol, mas, o que houve é que ficamos três meses sem futebol por causa da pandemia e quando os jogos voltaram foi sem torcida nos estádios, assim não aconteceu evolução qualquer”, comentou, ao O SÃO PAULO, Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Em todos os âmbitos do futebol

Carvalho recordou que antes da pandemia, havia o senso comum de que os insultos raciais partiam majoritariamente dos torcedores, mas a ocorrência de casos mesmo com as arquibancadas sem torcida mostraram que o racismo no futebol é algo mais abrangente: pode estar nos cânticos gravados dos sistemas de som nos estádios, no discurso da imprensa esportiva e até mesmo na boca dos dirigentes dos clubes.

O que Celsinho, jogador do Londrina, tem vivenciado nesta temporada ajuda a explicar tal abrangência. Em julho, em uma transmissão esportiva de rádio, o cabelo do atleta foi comparado a “bandeira de feijão” e “um negócio imundo”. Semanas depois, em outra transmissão de rádio, a comparação foi com um “ninho de cupim para bater na bola”; e em agosto um dirigente do time catarinense do Brusque, que assistia da arquibancada a partida contra o Londrina pela Série B do Campeonato Brasileiro, assim dirigiu-se ao atleta, aos gritos: “vai cortar o cabelo, seu cachopa de abelha”.

Inicialmente, o clube catarinense foi punido com a perda de três pontos, mas após ingressar com recurso no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) conseguiu reaver a punição na quinta-feira, 18. A defesa do Brusque argumentou que o ato não foi praticado por  “considerável número de pessoas” e também afastou o autor dos xingamentos, Júlio Antonio Petermann, até então presidente do conselho deliberativo do clube.

“Esse episódio realmente mostra o quanto precisamos discutir o que é o racismo no Brasil, pois é algo que vai muito além do insulto, do xingamento. Quando se diz que o cabelo de uma pessoa negra é sujo, há racismo nesta frase. O ato de racismo que ocorreu lá foi repugnante, mas a nota oficial e a justificativa do agressor dizendo que não entendia aquilo como um ato racista, mostra o quanto o racismo é estrutural”, ressaltou Carvalho.

Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol (arquivo pessoal)

Cada vez mais inaceitável

Apesar da crescente de casos, o diretor do Observatório vê como aspecto positivo o fato de cada vez mais a temática sobre o racismo estar sendo debatida na mídia e na sociedade como um todo, em especial por pessoas que entendem que o futebol “não é espaço para violência ou para o torcedor poder cometer qualquer ato de preconceito em nome do amor a seu clube. A pauta antirracismo está aumentando dentro dos coletivos, da imprensa esportiva, temos visto cada vez mais debates sobre racismo no futebol e pessoas falando sobre o tema não só quando acontece um caso”.

Carvalho, no entanto, lamenta que o combate ao racismo ainda não esteja no centro das preocupações dos dirigentes dos clubes e daqueles que comandam o futebol no País. Ele defende que se ampliem reflexões sobre a temática dentro dos clubes, “promovendo debates entre os torcedores, entre as torcidas organizadas, associados, diretores e, principalmente, entre atletas do profissional e das categorias de base sobre o que é o racismo”, e que ocorram punições exemplares a quem externa o racismo por gestos e/ou palavras. “A punição não é o melhor caminho nem o único, mas é preciso que ocorra, a fim de que quem comete racismo não se sinta livre e liberado para externar seu preconceito nos estádios de futebol”, opinou.

Em casa

Para Carvalho, uma das maneiras para ‘virar o jogo’ contra o racismo no futebol é o diálogo em família: “Um pai ou mãe que leve o filho para uma escolinha de futebol pode falar com a criança sobre a história do futebol brasileiro e sobre a presença de negros e negras neste esporte. Lembrar que, no começo, negros e negras não podiam jogar nos clubes do Brasil e que ainda hoje a democracia racial não é plena no futebol. Não ter treinadores negros nos principais clubes é parte desse racismo, por exemplo. Os pais também podem alertar que xingamentos e insultos racistas, bem como qualquer forma de violência, não devem ocorrer”.

“O futebol nos dá essa possibilidade de bem dialogar com as crianças sobre o racismo e pode, sim, ser um mecanismo para combater tal prática”, enfatizou.

Que o comportamento seja de respeito com todos
O documento “Dar o melhor de si”, publicado em 2018 pelo Dicastério para os leigos, a família e a vida, sobre a perspectiva cristã no esporte, tem um capítulo dedicado aos desafios para o desenvolvimento esportivo.
Uma das preocupações é sobre o comportamento das pessoas envolvidas nas diferentes esferas esportivas, pois da mesma maneira em que há “momentos, manifestações e atitudes que nos tornam conscientes da alegria, da força e do significado de um esporte harmonioso e equilibrado” também ocorrem casos em que “os espectadores insultam os jogadores adversários, os seus adeptos e os árbitros. Este comportamento pode degenerar em violência, quer verbal (com coros cheios de ódio) quer física (….) Às vezes, um adepto também pode utilizar o desporto para incitar ao racismo ou a ideologias extremistas. Os espectadores que não têm respeito pelos atletas, por vezes, atacam-nos, inclusive fisicamente, ou continuam a insultá-los. (…) As equipes, as associações e as federações esportivas, quer nas escolas quer no desporto profissional e de cúpula, têm a responsabilidade de garantir que o comportamento dos espectadores respeite a dignidade de todas as pessoas que participam ou assistem a um evento esportivo”.

Conheça o Observatório da Discriminação Racial no Futebol

https://observatorioracialfutebol.com.br

Redes sociais – @observatorioracialfutebol 

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