PL 2630/20, o risco para a liberdade de expressão

O que há de perigoso no texto aprovado no Senado e começo a tramitar na Câmara Federal nesta semana?

Arte: Sergio Ricciuto Conte

O Projeto de Lei (PL) 2630/20, que prevê a criação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, popularmente conhecido como “PL das Fake News”, chega para tramitação na Câmara, após ser aprovado pelo Senado em 30 de junho, com alguns itens polêmicos relativos à garantia da liberdade de expressão mediante as medidas para evitar a disseminação de falsas informações pelas redes sociais e aplicativos de mensagem.

Alguns pontos controversos do texto original não foram incluídos na redação final, como aqueles que previam alterações no Código Penal para punir os disseminadores de fake news. As principais críticas eram que as avaliações se dariam de modo subjetivo e poderiam levar à injusta criminalização dos usuários das redes.

Outros tópicos do PL aprovado no Senado devem gerar debates ao longo da tramitação na Câmara, como os apresentados a seguir.

IDENTIFICAÇÃO DE USUÁRIOS

Na redação final do PL 2630/20, foi retirado o item que previa a obrigatoriedade de que o usuário fornecesse um documento de identificação e um número de celular para criar uma conta.

Essa identificação, porém, será necessária quando houver denúncia de desrespeito ao que constar na futura lei; indícios de que a conta é automatizada, sem ser identificada como tal; indícios de que seja falsa; ou se uma ordem judicial exigir tal documentação. Provedores de redes sociais e de serviços de mensagem deverão, ainda, desenvolver medidas técnicas para detectar fraudes no cadastro e o uso de contas em desacordo com a legislação, conforme consta no artigo 7º do projeto de lei.

Pelo artigo 8º, prevê-se que os serviços de mensagem vinculados a números de celulares serão obrigados a suspender as contas desabilitadas pelas operadoras de telefonia, independentemente da motivação.

“Para ilustrar, se alguém deixa de pagar a conta de telefone por alguns meses e a operadora bloqueia a linha telefônica, isso seria informado à plataforma de rede social e a pessoa perderia sua conta nessa rede, por exemplo, de WhatsApp, apesar de poder usar internet Wi-Fi”, detalhou ao O SÃO PAULO Rafael Medeiros, CEO da Comunicação Aberta, consultoria de comunicação e marketing digital.

Medeiros avalia que, com essa medida, haverá também o complicador do compartilhamento dos dados de uma pessoa entre as operadoras e as plataformas, algo que a Lei Geral de Proteção de Dados não permite.

Esse item do PL 2630 também é criticado pela Coalizão Direitos na Rede, formada por organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da internet livre e aberta no Brasil, que entende que, assim, foi mantida “a prática da identificação para um contingente significativo de usuários, sobretudo a partir de simples denúncias que poderão ser recebidas pelas plataformas – o que permite o abuso e massificação deste procedimento”.

ARMAZENAMENTO E ENCAMINHAMENTO DE CONTEÚDO

O PL também prevê que os serviços de mensagem e as plataformas de redes sociais devem armazenar por três meses os registros de mensagens encaminhadas em massa, sendo esse encaminhamento entendido como aquele em que uma mesma mensagem é enviada por mais de cinco usuários, em intervalos de até 15 dias, para grupos de conversa, lista de transmissão e outros mecanismos que congregam múltiplos usuários. Tal armazenamento não será obrigatório se a mensagem chegar a menos de mil pessoas.

Para a Coalizão Direitos na Rede, essa rastreabilidade sujeitará muitas pessoas a requerimentos abusivos de informações pessoais e as deixará expostas ao mau uso dos dados: “Terão seus dados guardados obrigatoriamente pelos aplicativos todas as pessoas que, por razões legítimas ou involuntárias, participem das cadeias de compartilhamento de conteúdos, como jornalistas, pesquisadores, parlamentares e quaisquer cidadãos que, eventualmente, repassem uma postagem a fim de denunciá-la. Caso haja um processo judicial envolvendo esses conteúdos, caberá às pessoas envolvidas o dever de explicar, a posteriori, sua não relação com as indústrias de disseminação de desinformação que o PL pretende atingir. Trata-se de grave violação ao princípio da presunção de inocência”.

A redação aprovada no Senado limita o encaminhamento simultâneo de uma mesma mensagem para até cinco pessoas ou grupos, um controle que, no entender do advogado Acacio Miranda, especialista em Direito Constitucional e Penal, é indevido.

“Não compete ao poder público determinar quantas mensagens você pode ou não passar adiante. Isso já está na autorregulação do sistema. Eventuais interferências em funções que seriam propriamente da iniciativa privada e não do poder público, é melhor que sejamenxugadas no PL na Câmara”, disse o advogado à reportagem.

Os provedores também deverão instituir mecanismos para verificar o consentimento prévio dos usuários para inclusão em grupos de mensagens e listas de transmissões, e, no caso de conteúdos patrocinados, deve ser garantido ao usuário dispositivos para não receber mais as mensagens, caso assim deseje, sendo que todos os conteúdos impulsionados e publicitários deverão ser devidamente identificados.

De acordo com o artigo 18 do PL 2630/20, “os provedores de redes sociais devem requerer dos anunciantes e responsáveis pelas contas que impulsionam conteúdos que confirmem sua identificação, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido”.

COMO IDENTIFICAR UM ROBÔ?

Contas que funcionem automaticamente – as chamadas ‘contas-robôs’ – poderão ser excluídas pelas plataformas e caberá às empresas viabilizar medidas para identificar aquelas que apresentem movimentação incompatível com a capacidade humana.

“Os critérios não estão suficientemente claros e existe uma complexidade técnica enorme, especialmente nos casos de deepfake [tecnologia que usa inteligência artificial para criar especialmente vídeos falsos]. Novas técnicas de fraude com robôs são criadas cada vez mais rapidamente e simulam o comportamento humano, de modo que os sistemas antifraude precisam ser atualizados constantemente. Os sistemas antifraude não conseguem ter um nível de precisão de 100% para discernir seres humanos e robôs. Esse é o desafio enfrentado diariamente pelos maiores especialistas técnicos em Segurança da Informação no mundo. Então, por mais que a lei defina o banimento automático, isso não é possível de fazer com 100% de exatidão, e seres humanos serão prejudicados ao serem confundidos com robôs”, analisou Medeiros.

QUANDO UM CONTEÚDO PODERÁ SER EXCLUÍDO?

Imediatamente e sem notificar os usuários, as plataformas poderão excluir conteúdos que gerem dano imediato de difícil reparação; que atentem à segurança da informação ou do usuário; que levem a grave comprometimento da usabilidade da aplicação; bem como aqueles de incitação à violência; indução ao suicídio ou à pedofilia e deepfake. No entanto, deve ser garantido ao usuário o direito de recorrer da decisão.

“Embora seja algo válido, o problema é a forma por meio da qual isso será exercido. Parece-me que a intenção do legislador era banir os divulgadores de fakes, os usuários comprados, de forma a dar maior transparência à rede, mas a questão é que não foram determinados critérios para que isso seja feito e a quem caberá o exercício disso”, comentou Miranda.

AGENTES POLÍTICOS PROIBIDOS DE BLOQUEAR USUÁRIOS

Pela atual redação do PL, agentes políticos e órgãos públicos serão impedidos de bloquear usuários em suas redes sociais. No entanto, quem exerce mandato ou tenha cargo público poderá criar uma conta identificada como de uso pessoal, na qual terá liberdade para restringir o acesso de usuários e moderar os comentários.

“Isso é uma forma de perpetuar injustiças. Os excessos cometidos devem ser punidos com os rigoresda lei. Se eu, como agente público, não posso apagar uma mensagem que foi postada na minha rede social, ficarei exposto a um eventual excesso, a uma eventual injustiça ad aeternum, e não acho que isso seja condizente com o nosso sistema. E isso pode ser utilizado por adversários políticos futuramente, de modo que deixa de ser uma ferramenta de debate, de transparência, e se torna uma ferramenta de ataque bastante eficaz”, avaliou Miranda.

CONSELHO DE TRANSPARÊNCIA E RESPONSABILIDADE

O PL estabelece a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que terá a missão de supervisionar as redes sociais e os aplicativos de mensagem, além de definir diretrizes para a autorregulação e um código de conduta para o setor, bem como avaliar os relatórios trimestrais das plataformas e analisar os procedimentos de moderação.

As empresas de redes sociais e de serviços de mensagem poderão criar uma instituição autorreguladora, que precisará ser certificada pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet.

Para Medeiros, a melhor forma de se combater as fake news e toda desinformação é com “boa informação, liberdade de expressão para um diálogo plural e educação para analisar os fatos e a realidade em busca da verdade. Acredito que o projeto de lei poderia se concentrar em uma dimensão educativa de formar e conscientizar a população sobre a verificação de informações e fontes que promoveriam uma capacidade de análise dos cidadãos. Isso daria mais trabalho, mas me parece ser mais efetivo no tempo”.

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