A ética demasiadamente humana no uso da inteligência artificial

Os fãs de Isaac Asimov e de literatura de ficção científica nunca pensariam que o uso de robôs ou outros sistemas de inteligência artificial se tornaria tão real. Robôs conversacionais (chatbot) são cada vez mais comuns no atendimento ao cliente. Começam a ser adquiridos e treinados os robôs-cachorros (robot dog). A aplicação da inteligência artificial passa a ser fundamental na cadeia produtiva, na personalização da experiência humana com produtos e serviços, na prevenção a fraudes e na análise de padrões, comportamentos e dados para a elaboração de previsões mais acuradas e para a tomada de decisões mais precisas.

Ao mesmo tempo, nota-se uma preocupação focada na excessiva independência das máquinas, uma exagerada preocupação com a revolta dos robôs, como se a existência da máquina inteligente, por si só, pudesse nos levar à extinção das espécies. Nessa discussão sobre a inteligência artificial, deve-se considerar um equilíbrio adequado de riscos e oportunidades e não exagerar nas previsões apocalípticas. A inteligência artificial veio para ficar.

Estão em pauta no cenário internacional debates para uma adequada ponderação do que é aceitável ou não para o uso da inteligência artificial, questões éticas pautadas na conformação de vieses dos sistemas treinados e usados por pessoas, com a preocupação da ausência de transparência e explicabilidade plena quanto à caixa-preta de seu desenvolvimento e de seu funcionamento. Foca-se também a alimentação, qualidade e uso dos dados coletados.

Nesses debates que levam a uma corrida de protagonistas ao redor do mundo, por pesquisa, desenvolvimento e regulação, é comum notar uma tentativa de conceituação dessa inteligência artificial, em relação à qual se possam estabelecer os parâmetros jurídicos aplicáveis, definir fundamentos, garantir o cumprimento de valores e princípios éticos comuns, prescrever direitos e deveres e ponderar graus de riscos, entre vedados e permitidos com rígida governança ou permitidos, desde que previamente informados, e sua consequente responsabilidade nas esferas penal, administrativa e criminal.

Essa conceituação da inteligência artificial, vale notar, não se reduz ao chat GPT, mas inclui um conjunto amplo e variado de sistemas de softwares hardwares, com diversos graus de autonomia, focado em aprendizado, planejamento, processamento dos dados e atuação perceptiva e sensorial da máquina.

Entre as preocupações éticas com o uso da inteligência artificial, nota-se que muitos problemas surgidos são humanos, demasiadamente humanos, refletidos no conhecimento e na atuação autônoma das máquinas.

Carregam preconceitos e vieses inconscientes de pessoas humanas que desenvolvem, fornecem e operam a inteligência artificial, escolhendo, inclusive, o modo de selecionar e aplicar sua rica base de dados. Trazem aspectos discriminatórios definidos pelo ser humano que afrontam, muitas vezes, a lógica comum de igualdade, liberdade e dignidade humana, entre outros, estabelecendo uma seleção social inadequada, ilegítima e injusta de quem pode ou não se servir de determinados serviços, frequentar determinados locais ou praticar determinadas condutas. Estamos a ver que todas as questões éticas que surgem, portanto, não são próprias da inteligência artificial, mas do ser humano que dela se aproveita. Não resolve, portanto, demonizar a inteligência artificial ou construir, a partir dela, os cenários apocalípticos. O pecado continuará a ser humano, demasiadamente humano.

Crisleine Yamaji é advogada, doutora em Direito Civil e professora de Direito Privado. E-mail: direitosedeveresosaopaulo@gmail.com

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