Ler a Bíblia junto com a Igreja

Uma acusação que ainda nos é frequentemente dirigida por alguns irmãos separados – e à qual convém responder logo no início deste Mês da Bíblia – é que a Igreja Católica supostamente proibiria seus fiéis de tomar contato direto com as Escrituras. Nada mais distante da verdade: o que a Igreja realmente ensina é que “é preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura” (constituição dogmática Dei Verbum, 22) – por isso mesmo, aliás, é que desde os primeiros séculos a tradição católica foi incorporando e difundindo traduções dos textos sagrados para as línguas mais faladas (a Septuaginta, que traduzia o Antigo Testamento do hebraico para o grego, e a famosa Vulgata de São Jerônimo, que vertia toda a Escritura para o latim, língua então mais acessível). Em nossos dias, esta preocupação se traduz no incentivo a “traduções aptas e fiéis nas várias línguas” modernas (Ibidem).

Mais do que isso: a Igreja não apenas recomenda aos padres e pregadores que “mantenham um contato íntimo com as Escrituras, mediante a leitura assídua e o estudo aturado”, para que assim possam “comunicar aos fiéis que lhes estão confiados as grandíssimas riquezas da palavra divina” – antes, ela também “exorta com ardor e insistência todos os fiéis” à “leitura frequente das divinas Escrituras, porque ‘a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo’” (Idem, 25).

A própria participação na Santa Missa, por sinal, é uma excelente forma de ganhar intimidade com a Bíblia: as leituras da Liturgia nunca são escolhidas ao acaso – antes, elas são estruturadas em ciclos periódicos, para que os fiéis possam, ao cabo de dois ou três anos, percorrer todo o conteúdo dos Evangelhos e dos escritos apostólicos, e as principais partes do Antigo Testamento.

Mas de onde vem, então, aquela noção tão amplamente difundida de que os católicos teriam ressalvas quanto à leitura da Bíblia? A resposta, aqui, é que nós, católicos, de fato, recomendamos certas cautelas ao nos aproximarmos do texto sagrado – pois, como alerta o próprio São Paulo, “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Cor 3,6). Lembremos também que o diabo foi capaz de tentar Nosso Senhor, invocando os próprios textos sagrados! A Bíblia, portanto, pode ser pedra de tropeço se usada sem o devido preparo: e a prova cabal disso se deu em nosso país alguns anos atrás, quando um autoproclamado “pastor” convenceu uma mulher casada a cometer adultério porque, segundo o pastor, Deus mandara a Oseias: “Adultera!” – quando na verdade o que estava escrito era “adúltera” (com acento)…

Mil anos antes de Lutero promover seu cisma, Santo Agostinho já advertia que “as heresias nascem exatamente porque as Escrituras, que são boas, são entendidas de uma forma que não é boa – e então aquilo que nelas não é bem entendido é também propagado de maneira temerária e audaz” (In Evangelium Iohannis, tract. 18,1). E o Papa Inocêncio III, na carta “Cum ex iniuncto”, enviada em 12 de julho de 1199 aos habitantes de Metz que haviam traduzido a Bíblia para o francês, escrevia que “o desejo de entender as divinas Escrituras e o zelo de exortar em conformidade com estas não merece repreensão, mas antes, recomendação; porém, estes leigos mostram-se dignos de repreensão, porque celebram pequenas reuniões ocultas, usurpam para si o ofício da pregação e zombam da simplicidade dos sacerdotes” (PL, 214, 695C-697A). Foi, afinal, o próprio Cristo quem “estabeleceu a alguns como apóstolos; a outros, profetas; a outros ainda, doutores” (cf. Ef 4,11) – de modo que ninguém deve arrogar para si próprio o direito de pregar.

Amemos, então, as Escrituras; leiamo-las com assiduidade, dirigindo nosso coração a Deus – mas não abandonemos jamais a Mãe Igreja, que no-las deu de presente!

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