Somos filhos de Deus

A Páscoa é, para nós, cristãos, um evento tão fundamental que sua celebração é mantida ao longo de oito dias como se se tratasse de um só: ao longo de toda esta Oitava, a Santa Missa é oferecida em ação de graças “neste dia em que Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”. Retornemos, então, àquela solene liturgia do Sábado Santo, e àquele convite de “ouvir, no recolhimento desta noite”, a narração de “como Deus salvou seu povo”, e continua agindo para “levar à plenitude a salvação inaugurada na Páscoa”.

No fundo, toda a ação de Deus na história do universo pode ser resumida em dois grandes desígnios: a Criação e a Redenção. Na Criação, Deus nos faz suas criaturas; na Redenção, Ele nos torna seus filhos.

A Primeira Leitura da Vigília Pascal (Gn 1,1 – 2,2) nos fala da obra divina pela qual “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (v. 1), isto é, tudo o que existe no mundo. As coisas todas foram criadas segundo uma certa ordem ou harmonia (o que se expressa poeticamente nos “sete dias”), e cada uma possuía seu grau próprio de perfeição (de cada etapa da Criação, fala-se que “Deus viu que era bom”; vv. 4.10.12.18.21.25). No auge deste mundo natural, estava o homem, que com sua razão e liberdade fora feito “à imagem de Deus”: “E Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom” (vv. 27.31). A Criação, por si só, já contém um certo senso de completude e acabamento  – daí o descanso divino ao sétimo dia (Gn 2,2). As obras da Criação natural são certamente numerosas e cheias de sabedoria, e enchem a terra – mas não passam de criaturas… (Salmo 103). Por isso é que na oração que sucede estas leituras reconhecemos que Deus é “admirável na Criação”, mas “ainda mais admirável” na Redenção – e pedimos-Lhe “a sabedoria de (…) chegar à eterna alegria”, por meio da resistência ao pecado.

E é justamente no pecado que se encontram a ruptura e o desequilíbrio da ordem estabelecida por Deus na Criação. Aquela “primeva desobediência” trouxera ao mundo “a morte e todo nosso pesar, com a perda do Éden”, como cantava John Milton – e para sabê-lo não precisamos crer na Bíblia, basta testemunhar, em nosso próprio coração, este mesmo duelo entre luzes e trevas. Mas – eis aqui o Evangelho! – Deus não nos abandonou em nosso infortúnio: em sua amável sabedoria, em seu sábio amor, Ele dispôs, providencialmente, um caminho para nos salvar, um verdadeiro drama épico.

Nós cremos, de fato, que a salvação e a revelação de Deus ao longo da história se fazem com palavras e obras (Dei Verbum, 2) – de modo que a própria história universal não seja um mero se suceder linear de fatos desconexos, senão uma trama que “deve ser interpretada como uma narrativa coerente e artisticamente dirigida, cheia de alusões, prefigurações, rimas, ecos, significados que desdobram sobre si mesmos, tipologias e profecias” (Robert Barron, The Word on Fire Vatican II Collection, p. 19).

Por isso é que nós rememoramos os episódios dos patriarcas e do povo de Israel – pois eles são cheios de notas e verdades sobre nossa própria fé cristã. A Segunda Leitura (Sacrifício de Isaac; Gn 22,1-18), por exemplo – e terminemos nossa reflexão com esta ideia –, nos fala da filiação divina. Deus manda Abraão sacrificar-lhe seu filho único, a quem tanto ama (v. 1), fazendo-o subir o monte carregando a lenha às costas (v. 6). Poderia haver uma prefiguração mais clara para o sacrifício que o próprio Deus Pai faria do seu Filho muito-amado, milênios depois? Obedecendo a Deus até este extremo de amor, Abraão recebeu a promessa de uma descendência numerosa como as estrelas do céu – e na oração que encerra esta leitura, nós nos reconhecemos como os filhos desta promessa, chamando a Deus já não de criador, mas de Pai de todos os fiéis.

Neste Tempo Pascal que começamos, imploremos, então, a Cristo ressuscitado – o mesmo que abriu a inteligência aos discípulos de Emaús, dando-lhes a graça de entender as Escrituras à luz de seu Mistério Pascal – que nos abra os olhos e o coração, para que nos enxerguemos como seus irmãos e filhos, e coerdeiros do Céu.

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