O dever de amparo nos anos de velhice

O Direito é uma arte do bom e do justo (“jus est ars boni et aequi”) e um conjunto de normas cogentes ou um complexo de regras de comportamento. É a expressão formal da vida comum em sociedade e, assim sendo, abarca também valores prevalentes da vida cristã de família e da comunidade. 

A família é o núcleo da vida cristã e núcleo da vida em sociedade, foco de direitos e deveres sujeitos à regulação e coerção do Estado, por vias constitucionais e legais. 

O Papa Francisco chama a nossa atenção, em seu pontificado, à “cultura do descarte”, uma cultura que se fortalece não só por causa de um apego a coisas materiais, mas de um desapego das pessoas que nos circundam. E essa cultura se soma a uma excessiva ineficácia de regras de comportamento, entre as quais a proteção da vida dos idosos contra a violência, além de uma violação constante do dever de amparar os idosos na velhice ou do consequente desrespeito aos direitos dos idosos de serem amparados por seus filhos, pela comunidade e pela sociedade. 

Esse dever de amparo é cristão, moral e, também, jurídico.

Não se deveria depender de previsões constitucionais ou legais para proteger os idosos de ações ou omissões que lhes provocam sofrimentos físicos ou psicológicos, danos e até mesmo a morte. Como filhos, prevalece nosso dever de amparo do filho em relação ao pai, o qual se inspira no quarto mandamento. 

Esse dever, constitucional e legalmente formalizado, tem a força coercitiva e de supervisão do Estado, e dele decorre uma série de responsabilidades que vão de uma ajuda material a um sustento moral, em anos de velhice. 

Não se trata somente de dever dos filhos, pois essa responsabilidade é, antes de tudo, familiar, mas, ao mesmo tempo, não se restringe à família, com sua exigência de uma conduta de toda a comunidade. E recai também sobre o próprio Estado, que deve ser provedor do mínimo sustento e da adequada proteção aos idosos, quando a família, em sua realidade concreta, não apresenta condições de fazê-lo. 

Nota-se, portanto, que o Direito trata de aspectos pertinentes a relações humanas, permeadas de valores de uma sociedade que traz o primado familiar como base da ordem social brasileira. 

A família vem inserida em um conjunto de determinações constitucionais e legais no dever de os filhos ampararem os pais ou de os mais jovens ampararem os mais velhos, em situações de carência, enfermidade e velhice, de forma análoga àquela exigida dos pais no amparo aos menores. São disciplinados formalmente e devem ser efetivos os direitos dos idosos de participação na comunidade, de defesa de sua dignidade e de seu bem-estar, preferencialmente em seus próprios lares, e de sua inviolável e irrenunciável vida.

O fundamento constitucional se soma, nesse contexto, a uma detalhada previsão de normas infralegais – o Código Civil, com suas previsões de alimentos e curadoria, o Código Penal, com a criminalização de condutas de discriminação, retardamento de assistência à saúde, negação de acolhimento e permanência, o Estatuto do Idoso, com todo o detalhamento dos direitos dos idosos e das infrações contra sua proteção, as Políticas Nacionais do Idoso, com seu regramento sobre família, envelhecimento e assistência e o Código de Defesa do Consumidor, entre outros, com a defesa do idoso em sua vulnerabilidade e hipossuficiência. 

São anos e anos de contribuição à construção da sociedade; portanto, as normas de proteção deveriam ser suficientes para garantir aos idosos uma mínima condição de dignidade, sustento e os meios suficientes para a vida; se não o são, hão de prevalecer o bom senso e a busca constante de melhor compreensão e efetividade de todo esse arcabouço normativo para que seja eficaz o combate à “cultura do descarte”, fomentadora de situações de exclusão e violência contra os idosos. 

Crisleine Yamaji é advogada, doutora em Direito Civil e professora de Direito Privado. E-mail: direitosedeveresosaopaulo@gmail.com

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