Não ardia o nosso coração?

“Não ardia nossos corações enquanto Ele falava pelo caminho?” (Lc 24,32). A frase, pronunciada pelos discípulos de Emaús, no retorno de Jerusalém após a crucifixão, traz elementos importantes para nos indicar como colher certezas e discernir e julgar adequadamente sentimentos, pensamentos e experiências. A certeza que lhes advém – de terem encontrado, verdadeiramente, o Senhor ressuscitado – ocorre de modo gradual, suplantando a tristeza, o cansaço e o medo. Quando era pequeno, acreditava que apenas o medo e a tristeza impediam de ver quem era o Senhor, o que faz pensar o quanto sentimentos e emoções dificultam o uso adequado da razão. Neste episódio, porém, como veremos, as emoções possuem papel maximizador – afeto que promove atenção e abertura.

Não adentrarei nos elementos teológicos que se depreendem desse trecho dos Evangelhos; para tanto, remeto o leitor aos vários santos e teólogos que contribuíram para esta análise (cf. ex. Santo Agostinho, Ser. 235; PL 38, 1117). Retornarei aos aspectos que interessam, em como o episódio pode auxiliar a compreender a dinâmica da certeza no conhecimento, também identificada na História da Filosofia como a questão da Verdade.

Em um momento histórico, no qual somos atropelados por uma avalanche de opiniões, informações, testemunhos “bem intencionados”, mas motivados não pelo desejo de nos fazer pensar por nós mesmos, mas de decidir e pensar por nós, aquela certeza deveria ser almejada ardente e profundamente por cada um.

Para clarificarmos a dinâmica da razão humana, o encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos de Emaús é paradigmático. Nele, identificamos quatro elementos fundamentais, a começar por demonstrar que a certeza no ato de conhecer dá pistas corporais: “Não ardia nossos corações?” Coração como símbolo do nosso eu corporal. Segundo, a certeza surge por meio de um encontro historicamente delimitado. Algo aparentemente banal – encontrar-se com alguém – ao explorar seu aspecto fenomenológico, indica que é uma experiência exclusivamente humana, de abertura total para o outro, tendo como consequência existencial a mudança. Assim, embora nos “encontremos” diariamente com dezenas, às vezes, centenas de pessoas, nem todos esses “encontros” possuem potencial modificador. Também não seria certo afirmar que nos encontramos com um animal, montanha ou planta, senão que colhemos seu impacto afetivo. Terceiro, um outro, no caso Jesus que se aproxima e, de modo pedagógico e afetivo, “fala a língua daqueles com quem caminha”. Quarto, a certeza frutifica em mudança concreta: “Levantaram na mesma hora e retornaram a Jerusalém” (Lc 24,33).

Corpo, Encontro, Outro, Mudança. De um lado, abertura; de outro, aproximação legítima, caridosa e misericordiosa de uma alteridade (outro). A certeza, deste modo, surge como derivação de uma experiência eminentemente humana, de uma razão que vai, aos poucos, colhendo indícios (corporais, inclusive), até o ponto da mudança, que se inicia no convite: “Já é noite, fica conosco?”

Esse Outro que se aproxima, que se curva para adentrar nossa experiência cotidiana, para não nos deixar à mercê de nossos pensamentos, imaginação, como O estamos acolhendo? Cabe a nós, homens e mulheres, vivendo neste século XXI, perguntarmos se uma tal dinâmica da certeza pode ocorrer, tal qual com os discípulos de Emaús, também conosco. Onde arde o nosso coração?

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