Se eu não tiver caridade, não sou nada

“Antes de tudo, mantende entre vós uma ardente caridade, porque a caridade encobre uma multidão dos pecados” (1Pe 4,8; cf. Pr 10,12). Concluindo esta série de reflexões sobre as três obras quaresmais que a Igreja nos propõe para este tempo forte de conversão, dedicaremos este editorial ao tema da caridade.

É verdade que a santidade consiste, antes de tudo, na intimidade com Deus – o maior dos mandamentos, afinal, é aquele “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento”. Seria um grande mal-entendido, porém, falar no amor a Deus e ao mesmo tempo desprezar o amor a todos os outros homens e mulheres, filhos do mesmo Pai. É o próprio Jesus, afinal, quem diz que o segundo mandamento, semelhante ao primeiro e com o qual compõe uma unidade de que “dependem toda a lei e os profetas”, é o “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-40). São João é enfático neste ponto: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).

Hoje em dia, a palavra amor acaba sendo frequentemente estirada para significar quase qualquer coisa. Mas, em linguagem cristã, o amor (ou caridade, ágape) tem um sentido bem determinado: “Não é um sentimento ou percepção, tampouco uma lealdade tribal ou uma fidelidade familiar. Trata-se, antes, de desejar incondicionalmente o bem do próximo. Muitas vezes, nós só somos bons, gentis ou justos para com os outros a fim de que, em retribuição, eles sejam bons, gentis ou justos para conosco. Isso, porém, é egoísmo indireto, e não amor. Eis por que amar os inimigos é a prova mais segura de amor” (Robert Barron, “Catolicismo”, p. 52).

A esmola que devemos intensificar na Quaresma são, portanto, todos os pequenos sacrifícios que decidimos fazer pensando no bem do outro, antes de nós mesmos.

A grande verdade, no entanto, é que, quanto mais agimos desta maneira amorosa e desinteressada, mais bem fazemos para nós mesmos! Em primeiro lugar, porque cada boa ação que fazemos repercute, com seu exemplo, para inspirar nos demais novos atos de amor. Pensando nisso, o famoso monge trapista Thomas Merton recordava os primeiros alvores de sua consciência moral: “Uma vez que a ninguém é possível, nem jamais seria, viver apenas por si próprio e para si próprio, os destinos de milhares de outras pessoas estavam fadados a ser afetados – alguns remotamente, mas outros de forma muito direta e imediata – pelas minhas próprias es- colhas e decisões e desejos, como também a minha própria vida haveria de ser moldada e modificada de acordo com a deles. Eu entrava num universo moral em que estaria em relação com todos os demais seres racionais, e no qual multidões inteiras de nós, densas quais enxames de abelhas, arrastar-se-iam reciprocamente em direção a um dado fim comum de bem ou mal, paz ou guerra” (“A montanha dos sete patamares).

Há ainda uma razão muito mais profunda, contudo, para nos beneficiarmos mutuamente com nossas obras de caridade: é que, quando Deus, em sua Providência, decidiu criar o uni- verso, Ele quis “salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente” (Lumen gentium, 9). Isso significa que, por meio da comunhão dos santos, nossos méritos ajudam os irmãos, de uma forma mística e sobrenatural, a crescer em virtude, a ter seus pecados perdoados, a amar a Deus.

Amemos, portanto, nossos irmãos com obras – com toda pureza de in- tenção, e, se possível, no escondimento. “Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, irá recompensar-te” (Mt 6,3-4).

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