É notório que o Cristianismo buscou desde logo o diálogo com a Filosofia, reconhecendo a validade e até a necessidade da busca humana pela verdade e pelo conhecimento sobre o real (cf. Fides et ratio, FR 1-6). Contudo, o diálogo entre o catolicismo e a ciência muitas vezes é pouco conhecido até mesmo entre os católicos. Somos, até hoje, vítimas de um preconceito iluminista, que vê na Idade Média uma “idade das trevas” e nega a razoabilidade da própria fé, reduzida a superstição. Como poderia um pensamento supersticioso, reminiscência de um período de trevas, dialogar com as luzes da razão que nos iluminam por meio da ciência?
Num drama irônico, o século XX, marcado pelo mais impressionante crescimento científico já registrado, tempo do mais eficiente domínio científico do ser humano tanto sobre a natureza quanto sobre o próprio ser humano, inaugurou um período de ceticismo e descrença sobre o alcance e o potencial da ciência para trazer felicidade ao ser humano. Nunca produzimos tanto alimento, nunca curamos tantas doenças, nunca transpusemos distâncias com tal facilidade – mas também nunca a morte foi tão cientificamente projetada como nas guerras modernas, nunca os sistemas naturais foram tão abalados pela atividade humana, nunca o conhecimento da mente e do comportamento humanos foram tão eficientemente utilizados para conduzir e dominar multidões. A admiração, genuína e válida, oscila entre o fascínio e o medo, a veneração e a negação.
Em nossos tempos, o providencial realismo cristão, que nos lembra, nas palavras do Papa Francisco, de que “a realidade é mais importante do que a ideia” (Evangelii gaudium, EG 231-233), não pode prescindir da ciência. Ela se tornou o instrumento mais eficiente para o conhecimento do mundo material, graças ao desenvolvimento do método científico e aos mecanismos de verificação das informações divulgadas por um sistema internacional de avaliação por pares (todo trabalho científico apresentado numa publicação especializada tem que ser revisto por especialistas, para verificar a pertinência e a confiabilidade dos resultados).
Contudo, a ciência não é mais do que uma descrição dos fenômenos e a compreensão das relações materiais de causa e efeito que os cercam. A própria filosofia da ciência mostra exaustivamente que a ciência não pode pretender dar uma resposta às questões do sentido da vida, da ética pessoal e da responsabilidade político-social. Quando alegamos estar tomando decisões com base na ciência, estamos apenas usando os dados científicos para decidir o que consideramos melhor para nós. A ciência procura nos informar o que está acontecendo, quais as causas do está acontecendo e, na melhor das hipóteses, o que poderá acontecer em decorrências de nossas decisões. Com essas informações, nos dá preciosos elementos para a tomada de decisões, mas não se sobrepõe à sabedoria que deve nos orientar para viver melhor.
Tanto a afirmação de que uma decisão é puramente científica (o chamado cientificismo) quanto a negação da base científica disponível para a tomada de decisões (o negacionismo, tão citado hoje em dia) são mecanismos ideológicos que visam, conscientemente ou não, a legitimar a dominação das consciências. Por isso, como lembra Francisco, falando especificamente da crise ecológica, mas apresentando uma verdade que vale para a resolução dos mais variados e complexos problemas da sociedade atual, necessitamos não apenas da resposta científica, mas também das “diversas riquezas culturais dos povos, a arte e a poesia, a vida interior e a espiritualidade” (Laudato si’, LS 63).
O diálogo entre os conhecimentos é vital para a sobrevivência e para a própria felicidade do ser humano em nossos tempos. Sabendo disso, trazemos neste Caderno Fé e Cultura uma apresentação da Academia Pontifícia de Ciências, voltada especificamente ao diálogo entre o catolicismo e a ciência contemporânea, escrita por Marina M. do Amaral Pais. Como 4 de outubro é o Dia de São Francisco, contamos também com um artigo do professor Marcos Aurélio Fernandes, do Departamento de Filosofia da UnB, sobre a relação entre o franciscanismo e os primórdios da ciência moderna – uma leitura fascinante para nos mostrar como a fé, vivida como paixão pelo real, pode iluminar e lançar-nos ao encontro com o desconhecido.
E já que o tema é a descoberta e nossa incessante busca pelo conhecimento do desconhecido, Rafael Ruiz, professor de história da UNIFESP, nos sugere a minissérie Sem Limites, que rememora a primeira viagem de volta ao mundo, realizada sob o comandado do português Fernão de Magalhães e do espanhol Juan Sebastián Elcano. E o professor Raul Cesar Fernandes, do Centro Universitário da FEI, indica O Homem que foi Quinta-Feira, de G.K. Chesterton, um livro sobre “a busca por compreender o mistério da realidade, aquilo pelo que vale a pena viver”, nas palavras de Raul.