Ensino da religião na escola: um bem para a humanidade

No Brasil, legislações asseguram a oferta das aulas no ensino fundamental, mas isso não tem acontecido. O Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade trabalha em propostas para a efetiva implantação dessa disciplina

Arte: Sergio Ricciuto Conte

Incentivar propostas educativas que, enraizadas no Evangelho, promovam a dignidade humana, a experiência do transcendente, a cultura do encontro e o cuidado com a casa comum é um dos objetivos da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano.

Na escola, um dos caminhos para se alcançar tais metas é o ensino religioso confessional, que não se trata de um momento de “catequese”, mas, sim, de se transmitir aos alunos “os conhecimentos sobre a identidade do Cristianismo e da vida cristã”, conforme aponta a carta circular 520/2009, da Congregação para a Educação Católica (CEC) sobre o ensino da religião na escola.

De acordo com este documento, sem a disciplina de ensino religioso, “os alunos estariam privados de um elemento essencial para a sua formação e desenvolvimento pessoal, que os ajuda a atingir uma harmonia vital entre a fé e a cultura. A formação moral e a educação religiosa favorecem também o desenvolvimento da responsabilidade pessoal e social e demais virtudes cívicas, e constituem então um relevante contributo para o bem comum da sociedade” (CEC 2009, no 10).

GARANTIDO EM LEI

O ensino religioso, de matrícula facultativa, deve ser ofertado como disciplina dos horários normais de aula nas escolas públicas de ensino fundamental, conforme consta no Art. 210 da Constituição federal. Também está previsto no Art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no qual se aponta que deve haver respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Conforme decisão do Supremo Tribunal Federal de setembro de 2017, os sistemas de ensino podem definir sua proposta de ensino religioso nos modelos não confessional ou confessional, neste último caso com aulas específicas sobre os ensinamentos de uma crença religiosa. Também no Art.11, §1o, do Acordo Brasil-Santa Sé é assegurada a oferta de ensino religioso católico e de outras confissões religiosas nas escolas públicas de ensino fundamental.

Em entrevista ao O SÃO PAULO, Dom Carlos Lema Garcia, Bispo Auxiliar da Arquidiocese e Vigário Episcopal para a Educação e a Universidade, recordou que a atual versão da LDB não mais menciona duas diferentes modalidades de ensino religioso – confessional e interconfessional –, mas prevê que os sistemas de ensino regulamentem os conteúdos do ensino religioso e, para isso, devem ouvir as diferentes denominações religiosas da sociedade civil. Assim, não cabe às secretarias de educação estaduais e municipais definir os conteúdos e os programas da disciplina de ensino religioso na escola pública, mas deverão fazê-lo após ouvir “a entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso”, como preconiza a LDB. Da mesma forma, os sistemas de ensino devem estabelecer normas para a habilitação dos professores de ensino religioso. “Segundo a praxe atualmente vigente, serão admitidos para ministrar ensino religioso aqueles professores da rede com licenciatura em alguma disciplina, que apresentem certificado de pós-graduação, especialização, mestrado ou doutorado em Teologia”, detalha.

UM ENSINO RELIGIOSO ‘NEUTRO’ É POSSÍVEL?

A carta circular da Congregação para a Educação Católica alerta para o risco de se criar confusão ou gerar um relativismo ou indiferentismo religioso se o ensino da religião estiver limitado a uma exposição das várias religiões de modo comparativo e “neutro” (cf. CEC 2009, no 12).

Dom Carlos Lema afirma que não existe um ensino religioso neutro: “A religião pressupõe dogmas, preceitos de fé que são a própria estrutura dessa realidade humana, ou melhor, dessa manifestação da cultura. Ela se diferencia das outras manifestações culturais enquadradas nas outras ciências e disciplinas. Seu objeto de conhecimento é a própria vivência desses preceitos religiosos”.

Também para Magna Celi Mendes da Rocha, mestra e doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, com Pós-Doutorado em Teologia pela PUC-PR, jamais o ensino religioso é algo neutro, pois “sempre parte de uma visão de mundo, de homem e de Deus, nem sempre explicitados”. Ela destaca que, quando o ensino da religião recai apenas sobre o aspecto cultural e as relações sociais, se mostra, equivocadamente, a dimensão religiosa como uma construção cultural, apresentando Deus como uma criação do homem, da cultura. “Não precisa ser um grande teólogo para entender que faz diferença na forma de abordagem do ensino religioso se Deus é uma criação do homem ou se o homem foi criado por Deus. Isso tem impacto no conteúdo e nas práticas pedagógicas”, comenta, destacando ser fundamental explicitar fundamentos “como a educação integral, inclusiva, que valoriza e respeita as diferenças, a alteridade, mas compreendendo que nosso olhar e ação sobre essas questões se dá a partir de uma ótica cristã, e não ateia”, comenta Magna.

Para Diego Genu Klautau, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP, do ponto de vista da Ciência da Religião, um ensino religioso não confessional é possível, contudo, a questão posta na carta circular da CEC é uma proposta de ensino religioso confessional como resultado da harmonia entre razão e fé, entre Igreja e sociedade, entre teologia e ciências. “Em outras palavras, a disputa evidente é se a epistemologia que estrutura o ensino religioso parte da autoridade do Estado e de seus peritos acadêmicos ou se sua origem é a Igreja com sua Tradição e seu Magistério. Obviamente, é possível uma articulação pacífica entre esses setores, uma postura que privilegie tanto a fidelidade ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro – e especificamente ao Evangelho – e que, portanto, não se submeta a esse indiferentismo religioso e a esse relativismo, quanto uma abertura dialogal aos demais componentes de uma sociedade plural e de um Estado laico, procurando uma superação de um enclausuramento sectário de teólogos que falam de maneira proselitista, solipsista e temerosa apenas para os já convertidos.”

UMA PROPOSTA PARA ESCOLAS PÚBLICAS

Conforme apurações do Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade, até o começo da pandemia de COVID-19 nenhuma escola pública de ensino fundamental na cidade de São Paulo tinha consolidada a oferta de ensino religioso, seja pela falta de interesse dos alunos em cursar a disciplina, seja pela falta de professores especializados.

O Vicariato está elaborando um projeto de disciplina de ensino religioso para a escola pública, a ser oferecida em duas etapas: a primeira abordaria o fenômeno religioso como um todo e uma base comum acerca das principais religiões, por meio de um enfoque híbrido, contemplando o senso religioso da pessoa, o sentido da vida, as grandes civilizações e sua visão da divindade; os valores humanos derivados do reconhecimento da dignidade humana, como honestidade, justiça, bondade, amor ao próximo e solidariedade. Já a segunda parte abordaria o ensino religioso confessional, determinado pela escolha da família do aluno, conforme a sua religião, a fim de que possa conhecer o conteúdo da sua crença religiosa, acesso a um aprofundamento intelectual da fé escolhida para si, segundo o desejo próprio e o de seus pais.

Na opinião de Magna da Rocha, os pais que compreendem a importância da formação religiosa para seus filhos devem reivindicar aos diretores das escolas que esse direito seja cumprido. “É necessário, ainda, que as autoridades religiosas de cada diocese reivindiquem esse direito às secretarias de Educação, aos políticos responsáveis. Enfim, é uma mobilização em várias frentes: tanto de capacitação quanto de base, e das instâncias superiores, tudo isso para que nossas crianças, adolescentes e jovens tenham acesso a uma formação que os ajude a desenvolver um aspecto tão essencial de sua vida, sempre de uma forma propositiva, nunca impositiva.”

NAS ESCOLAS CATÓLICAS

Nas escolas confessionais católicas há especial atenção com o ensino da religião. Conforme apontado na já referida carta da CEC, na escola católica o ensino e a educação se fundam sobre princípios da fé católica e nela “deve-se viver um ambiente escolar imbuído do espírito evangélico de liberdade e caridade, que favoreça um desenvolvimento harmônico da personalidade de cada um” (CEC 2009, no 6).

Com o auxílio de professores e educadores de instituições de ensino e de sua equipe pedagógica, o Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade elaborou uma proposta de currículo de ensino religioso para a escola católica, atendendo a pedidos dos participantes das assembleias do sínodo arquidiocesano, no ano de 2019.

O currículo tem por base a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), escalonada para todas as séries do ensino fundamental, oferecendo a base para materiais didáticos, sequências didáticas, formação dos professores, estratégias didáticas e a participação das famílias. Há também sugestões de temas a serem desenvolvidos no currículo para o ensino médio.

No texto de apresentação, Dom Carlos Lema Garcia lembra que um currículo centrado em habilidades e competências, como está preconizado na BNCC, “entende que a educação é integral: ensino e formação da pessoa. O professor ensina, produz conhecimento e gera aprendizagem; levando em conta o papel fundamental que a família deve exercer na formação de toda criança. É ela a responsável pelos hábitos, costumes e valores”.

Interessados em conhecer o currículo devem entrar em contato pelo e-mail vicariatoeducacaouniversidade@gmail.com

Foto: Agência Brasil

Um ensino aberto à ação de Deus e em diálogo com a realidade dos estudantes

Filmes, livros, letras de música, séries de streamings, declarações políticas, sociais ou éticas de agentes públicos. Se esses materiais interagem de alguma forma com a temática religiosa, podem ser utilizados com os estudantes nas aulas de ensino religioso. É o que afirma Diego Genu Klautau, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP.

Professor do Colégio Catamarã e do Centro Universitário FEI, ele explica que a religião não é um sintoma das estruturas psicológicas ou sociológicas da humanidade, mas uma realidade em si, cujo estudo deve ser tratado de maneira independente de disciplinas como História, Filosofia ou Sociologia, ainda que apresente interseccionalidades com tais áreas. Ressalta, também, que o ensino religioso confessional não deve ser uma catequese, mas, sim, “alargar a compreensão do estudante sobre a presença da religião nas sociedades, em seus produtos culturais, em seus costumes, em sua literatura e arte, em sua política e economia”.

Klautau é um dos docentes do curso de especialização em Teologia e Ensino Religioso, promovido pelo Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade e a Faculdade de Teologia da PUC-SP, que terá início em 6 de abril. Neste curso, ele falará sobre as relações entre o escritor J. R. R. Tolkien – cuja uma das obras mais famosas é “O Senhor dos Anéis” –, religião e cultura pop. Para Klautau, como desdobramento de dois princípios do ensino religioso confessional – a busca pela interdisciplinaridade escolar e a interação entre fé e cultura –, o fenômeno da cultura pop pode ser utilizado para investigar a permeabilidade da religião na sociedade.

“No caso de Tolkien em particular, essas demonstrações de princípios se tornam mais fáceis por três motivos. Primeiro, a biografia de Tolkien se torna uma prova inconteste de sua adesão à fé católica dentro de seu contexto histórico, a Inglaterra do século XX, o que pode ser detectado em suas produções acadêmicas e cartas pessoais. Em segundo lugar, os elementos que constituíram tanto sua obra literária – mundialmente famosa – quanto suas elaborações teóricas – menos conhecidas – são ricos em conteúdos acadêmicos sobre linguagem, antropologia, ciência da religião, filosofia e história. Por fim, a qualidade de sua obra literária, tanto artística quanto moral, e a impressionante formação de uma cultura tolkienista que atrai milhões de jovens de todo o mundo, de diferentes nacionalidades, credos e posições políticas”, detalha.

Também docente nesse curso na disciplina de Didática do Ensino Religioso, Magna Celi Mendes da Rocha, mestra e doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, com Pós-Doutorado e Teologia pela PUC-PR, comenta que é necessário avançar na formação e capacitação de professores para as aulas de ensino religioso.

“O professor precisa exercitar uma renovada abertura a Deus, ao outro, ao mundo e à própria interioridade. Essas quatro aberturas devem se traduzir na forma como prepara suas aulas, buscando aliar os conteúdos das aulas às vivências pessoais, às dos alunos e o que se passa no mundo. Além das aulas expositivas, podemos realizar rodas de conversa temáticas, visitas a lugares históricos e sagrados, visita a lugares de sofrimento, participação e preparação em celebrações e momentos litúrgicos fortes (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa)”, comentou Magna, que se dedica ao estudo e difusão da obra pedagógica de Edith Stein – Santa Teresa Benedita da Cruz, atua como assessora da Pastoral Universitária da PUC-SP e é professora convidada da Faculdade de Teologia desta universidade e do Centro Universitário Ítalo Brasileiro.

Saiba mais sobre o curso de especialização em Teologia e Ensino Religioso pelo site do Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade.

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DIEGO KLAUTAU

MAGNA DA ROCHA

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