Obra de arte do século XV expressa a profundidade do mistério trinitário

Ícone russo “A aparição de Mambré”, de André Roublev (1411) é a representação artística mais famosa da Santíssima Trindade

A Santíssima Trindade, cuja solenidade é celebrada no domingo, 7, é um dos “mistérios ocultos em Deus, que não podem ser conhecidos se não forem revelados lá do alto”, como afirma o Catecismo da Igreja Católica (CIC, 237).

“É verdade que Deus deixou traços do seu ser trinitário na obra da criação e na sua revelação ao longo do Antigo Testamento. Mas a intimidade do seu ser como Trindade Santíssima constitui um mistério inacessível à razão sozinha e, mesmo, à fé de Israel antes da Encarnação do Filho de Deus e da missão do Espírito Santo”, acrescenta o mesmo parágrafo do Catecismo.

Ao longo dos séculos, também se buscou expressar o mistério trinitário por meio da arte. A representação artística de Deus sempre foi vista com bastante cuidado pela Igreja. Um exemplo é o II Concílio de Niceia, em 787, que aprovou a veneração dos ícones sagrados.

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IMAGEM DE DEUS

Entre os cristãos do oriente, contudo, em particular os ortodoxos, ainda é predominante a compreensão de que, uma vez que o Pai e o Espírito Santo não se tornaram figura humana, visível e tangível, as imagens dessas pessoas divinas não poderiam ser retratadas.

Antes do século X, nenhuma tentativa foi feita para representar uma imagem separada como uma figura humana completa de Deus, o Pai, na arte ocidental. Isso se tornou mais comum a partir do século XIV, no Renascimento.  

APARIÇÃO EM MAMBRÉ

É da tradição oriental a representação artística mais famosa da Santíssima Trindade e considerada a obra mais adequada para expressar o sentido teológico e espiritual desse mistério da fé.

Trata-se do ícone bizantino “A aparição de Mambré”, do monge ortodoxo russo André Roublev, datado de 1411. A obra é baseada no relato bíblico do livro do Gênesis, que narra a aparição de Deus a Abraão nos carvalhos de Mambré, quando ele estava assentado à entrada de sua tenda.

“Abraão levantou os olhos e viu três homens de pé diante dele. Levantou-se no mesmo instante da entrada de sua tenda, veio-lhes ao encontro e prostrou-se por terra. Abraão serviu os peregrinos, conservando-se de pé junto deles, sob a árvore, enquanto comiam” (Gn 18, 1-5).

ÍCONE

Padre Jomar Vigneron, sacerdote da Missão Operária São Pedro e São Paulo e Capelão do Mosteiro do Encontro, em Mandirituba (PR), explicou que , na tradição cristã, os ícones, embora considerados imagens sagradas, não são simplesmente pintados, mas “escritos”, como frutos de uma experiência de fé e oração e que, no caso da obra do monge russo, foi uma “tarefa difícil nos mostrar o Invisível”.

A tradição cristã sempre compreendeu essas três figuras do relato bíblico como uma prefiguração das pessoas divinas da Trindade. “Foi como um anúncio velado do grande mistério da nossa fé”, afirmou o Sacerdote.

Detalhe do movimento circular das pessoas divinas

SIGNIFICADOS

O autor do ícone coloca os três Anjos em um círculo que os une em um flexível movimento circular.

“A melodia circular nos deixa maravilhados. Estamos diante de uma riqueza sinfônica de formas, de volumes, de traços e de cores”, observa o Padre Jomar, que descreve, ainda, que as três cabeças parecem se aproximar uma das outras para um “eterno abraço”. “Em cima do anjo da esquerda, encontra-se a casa de Abraão; do anjo central, o carvalho; e no da direita, um monte”, acrescenta.

As mãos esquerdas seguram o cajado do pastor, enquanto as mãos direitas convergem para a taça. “Em um ícone, não há sombra. Isso indica que o que está apresentado diante de nós não é mais da terra, está fora do tempo, semente de eternidade… Não há perspectivas… No centro do ícone, estamos, com efeito, do outro lado da mesa (lado de cá) convidados a participar da alegria eterna”, enfatizou o Sacerdote.

O PAI

No ícone, os anjos são representados segundo a ordem da Trindade mencionada na Profissão de Fé (Creio), isto é, da esquerda para a direita: Pai, Filho e Espírito Santo. “Apesar da uniformidade dos anjos, eles não são idênticos: as qualidades próprias de cada um são indicadas por sua particular ação no mundo”, observou.

A Profissão de Fé refere-se à primeira pessoa, o Pai, com poucas palavras, por ser indescritível. Por isso, na imagem, “sua túnica tem uma cor indefinível e sóbria (cor-de-rosa com reflexos marrom e azul-verde)”, destacou o Padre. Outro detalhe é que o Pai é o único que não se curva. “A sua mão direita nos indica o seu Filho bem-amado. A cor da sua roupa é discreta, reservada, assim com as asas”, acrescentou.

Detalhe do cálice que faz referência à Nova Aliança

O FILHO

No centro do ícone está o Filho. “A sua veste púrpura (vermelha) indica sua realeza. Atrás dele, o carvalho de Mambré simboliza a árvore da vida e, diante dele, a taça [cálice], evocando a Eucaristia, colocada sobre a mesa branca como sobre um altar. Os seus dois dedos indicam as suas duas naturezas – divina e humana”, descreveu  Vigneron.

“A sua mão quer pegar a taça da Nova e Eterna Aliança, a taça que, em Getsêmani, Cristo tomou para a nossa salvação (cf. Mc 14, 36). O simbolismo da taça é tão forte que Roublev o manifestou no tamanho do ícone: Jesus, o Cordeiro Pascal está no centro dela. No altar, dentro do cálice, Cristo está presente, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

O ESPÍRITO SANTO

À direita, está o Espírito Santo, cuja mão direita indica o cálice que será abençoado, fazendo uma referência à sua ação na Eucaristia, no momento da liturgia chamado epiclese, quando o Espírito Santo é invocado sobre os dons para se tornarem o corpo e o Sangue de Cristo.

“A cor verde do seu manto é cheia de vida, de esperança (apogeu da juventude). A vida nasce do Pai e do Filho, num movimento circular. A vida de Jesus se comunica pela taça e vai se espalhar na terra para todos os homens, simbolizados pelo retângulo (lado de cá da mesa). Cada um de nós está presente, com “um nome novo (cf. Ap 2, 17)”, destacou o Sacerdote.

OUTROS SÍMBOLOS

Padre Jomar explicou, também, que esse retângulo abaixo da imagem representa a terra e as limitações humanas, enquanto o círculo formado pela posição dos anjos simboliza a eternidade e a plenitude de Deus.

Atrás do Pai está a casa (tenda) de Abraão, que representa a Igreja, símbolo do Reino de Deus. “Ela parece ainda em construção… Não tem porta, todo homem é convidado a entrar”, observou o Sacerdote.

“A beleza deste ícone nos convida ao silêncio, à contemplação. Todo o ícone respira alegria, calma e serenidade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo estão juntos, convidando-nos para a mesa do Amor, da Ternura e da Sabedoria – outros nomes para falar da Trindade”, concluiu Vigneron.

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