Pela primeira vez na história, um pontífice romano discursou na cúpula do G7, que reúne os líderes das maiores economias do mundo: Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos, além de países convidados, como o Brasil.
No evento, realizado na sexta-feira, 14, em Borgo Egnazia, na região italiana da Puglia, o Papa Francisco falou sobre as oportunidades, perigos e efeitos da inteligência artificial (IA), um dos temas da cúpula.
Em um discurso de princípios, mas também de exemplos concretos, o Santo Padre se centrou na ambivalência da inteligência artificial e na necessidade do seu controle por parte dos homens e mulheres de hoje e de amanhã.
ENTUSIASMO E TEMOR
“Como é sabido, trata-se de um instrumento extremamente poderoso, utilizado em muitos domínios da atividade humana: da medicina ao mundo do trabalho, da cultura à comunicação, da educação à política. E é já legítimo supor que o seu uso influenciará cada vez mais a nossa forma de viver, as nossas relações sociais e, no futuro, até mesmo a maneira como concebemos a nossa identidade como seres humanos”, afirmou Francisco, reconhecendo que o tema da IA, por um lado, entusiasma pelas possibilidades que oferece; por outro, gera temor pelas consequências que deixa antever.
Ao ressaltar que o advento da inteligência artificial representa uma verdadeira “revolução cognitivo-industrial” que poderá contribuir para a criação de um novo sistema social caracterizado por complexas transformações epocais, o Papa reconhece que a IA poderia permitir uma democratização do acesso ao conhecimento, o progresso exponencial da investigação científica, a possibilidade de delegar às máquinas os trabalhos exaustivos. No entanto, o Pontífice pondera que, ao mesmo tempo, “ela poderia trazer consigo uma maior injustiça entre nações desenvolvidas e nações em vias de desenvolvimento, entre classes sociais dominantes e classes sociais oprimidas, colocando em perigo a possibilidade de uma ‘cultura do encontro’ em favor de uma ‘cultura do descarte’”.
GUERRA
“Permitam-me insistir precisamente sobre este tema: em um drama como o dos conflitos armados, é urgente repensar o desenvolvimento e o uso de dispositivos como as chamadas ‘armas autônomas letais’, a fim de banir a sua utilização, começando desde já pelo compromisso efetivo e concreto de introduzir um controle humano cada vez mais significativo”, reforçou Francisco, enfatizando: “Nenhuma máquina, em caso algum, deveria ter a possibilidade de optar por tirar a vida de um ser humano”.
O Santo Padre apontou para um risco que se registra como “uma perda ou pelo menos um eclipse do sentido do humano e uma aparente insignificância do conceito de dignidade humana”. E prosseguiu: “Parece que se está perdendo o valor e o significado profundo de uma das categorias fundamentais do Ocidente: a categoria de pessoa humana”, observou, reforçando que nenhuma inovação é neutra.
“A tecnologia nasce com um propósito e, com o seu impacto na sociedade humana, representa sempre uma forma de ordem nas relações sociais e uma disposição de poder, permitindo a uns realizar determinadas ações, enquanto a outros impede de concretizar outras”, acrescentou Francisco, salientando que para que as ferramentas de IA sejam instrumentos de construção do bem e de um amanhã melhor, devem estar sempre orientadas ao bem de cada ser humano. Devem ter uma inspiração ética.
O Pontífice lembrou, ainda, a necessidade de uma política saudável contra o que ele definiu como “o perigo tecnocrático”.
“O mundo pode funcionar sem política? Pode encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política? A nossa resposta a estas últimas perguntas é: não! A política é útil!”, refletiu.
ESPERANÇA
A conclusão do discurso foi um convite à esperança. “Não se pode parar a criatividade humana e o seu sonho de progresso, mas sim canalizar esta energia de uma nova forma”, recordou o Papa. “Este é precisamente o caso da inteligência artificial. Cabe a todos aproveitar bem e cabe à política criar as condições para que esse bom aproveitamento seja possível e frutífero”.
Esta não é a primeira vez que Francisco aborda a temática da inteligência artificial. Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, comemorado em 1º de janeiro, o Santo Padre exortou as nações a trabalharem unidas para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas. “Naturalmente, o objetivo da regulamentação não deveria ser apenas a prevenção de más aplicações, mas também o incentivo às boas aplicações, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e coletivas”, frisou na ocasião.
Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, comemorado no dia 12 de maio, o Pontífice abordou novamente a temática, afirmando que a utilização da IA poderá proporcionar um contributo positivo no âmbito da comunicação, “se não anular o papel do jornalismo no local, antes, pelo contrário, se o apoiar; se valorizar o profissionalismo da comunicação, responsabilizando cada comunicador; se devolver a cada ser humano o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação”.
REGULAÇÃO
Ao redor do mundo, os países têm tomado medidas proativas para regular o uso da IA, reconhecendo tanto suas potencialidades quanto seus riscos. A União Europeia, por exemplo, tem liderado com o AI Act, uma regulamentação abrangente que estabelece padrões rigorosos de proteção de dados e categorizações de risco.
A China também já implementou diversas normativas, enquanto os Estados Unidos optaram por princípios gerais por meio do AI Blueprint. O Reino Unido e países como o Peru, por outro lado, têm buscado harmonizar a inovação com regulamentações setoriais já existentes.
No Brasil, foi criada no Senado a Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial, que analisa o projeto de lei que regulamenta o uso da IA. A proposta define diretrizes para o desenvolvimento, implementação e uso de sistemas de IA no Brasil, por meio do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial.
Na missa do domingo, 16, na Catedral da Sé, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, comentou a participação de Francisco na cúpula do G7. “O Papa não foi lá representando nenhuma grande economia, nenhum grande poder militar. O Papa foi lá com a força do Evangelho… e lá fez a presença no meio dos grandes deste mundo, dizendo por onde as coisas deveriam ir, para se encontrarem as soluções para os problemas deste mundo”, afirmou.