Que a hora da partida seja cercada de afeto ao enfermo e de esperança na Ressurreição

Cuidado às pessoas nas fases críticas e terminais da vida sempre foi tema de atenção da Igreja, como está expresso na carta Samaritanus Bonus

Luciney Martins/O SÃO PAULO

“Todos nós trilharemos esta vereda. Mais cedo ou mais tarde, mas todos! Com dor, mais ou menos dor, mas todos! No entanto, com a flor da esperança, com aquele fio forte que está ancorado no além. Eis a âncora que não desengana: a esperança da Ressurreição. E quem percorreu primeiro este caminho foi Jesus”.

Nesta homilia de 2 de novembro de 2016, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, na missa no Cemitério Prima Porta, em Roma, o Papa Francisco recordou a realidade da morte e a esperança cristã na Ressurreição.

Especialmente para as pessoas com graves enfermidades, o momento da passagem à vida eterna pode ser marcado por sofrimento, desesperança e até renúncia da fé, situações que podem ser evitadas se os enfermos receberem o devido acompanhamento, conforme aponta a carta Samaritanus Bonus (SB), publicada em julho de 2020 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé.

O documento que trata sobre o cuidado às pessoas nas fases críticas e terminais da vida se tornou amplamente conhecido por reforçar a posição da Igreja contra a eutanásia e o suicídio assistido, e também apresenta indicativos para a atenção pastoral e humanitária àqueles que estão na iminência da morte.

NO AMBIENTE HOSPITALAR

Na carta, é recordado aos profissionais de saúde a sua missão de cuidar da vida até o seu fim natural, ainda que já se saiba que a doença levará à morte do paciente em breve.

“O objetivo da assistência deve mirar a integridade da pessoa, garantindo, com os meios adequados e necessários, o suporte físico, psicológico, social, familiar e religioso. A fé viva, mantida nas almas das pessoas ao entorno, pode contribuir à verdadeira vida teologal da pessoa doente, mesmo se isso não é imediatamente visível. O cuidado pastoral da parte de todos, familiares, médicos, enfermeiros e capelães, pode ajudar o doente a perseverar na graça santificante e morrer na caridade, no Amor de Deus” (SB I).

O AFETO E O HORIZONTE DA VIDA ETERNA

Perante os incômodos emocionais e espirituais de quem vive tamanha experiência de dor, “emerge de maneira inexorável a necessidade de que se saiba dizer uma palavra de conforto e de compaixão cheia de esperança de Jesus crucificado”, uma vez que “a dor é suportável existencialmente apenas onde há esperança. A esperança que Cristo transmite ao sofredor e ao doente é aquela da sua presença, da sua real proximidade” (SB II).

E especialmente os que estão mais próximos ao doente devem ser “sinal vivente daqueles afetos, daqueles laços, daquela íntima disponibilidade ao amor, que permitem ao sofredor encontrar sobre si um olhar humano, capaz de devolver o sentido ao tempo da doença” (SB II). Na carta, também é enfatizado que além dos cuidados médicos, uma pessoa em estado crítico ou terminal de vida necessita “de amor, de calor humano e sobrenatural”, pois somente com ela “ressignificando o evento mesmo da morte – mediante a abertura a um horizonte de vida eterna, que anuncia a destinação transcendente de cada pessoa – o ‘fim da vida’ pode ser enfrentado de modo cônsono à dignidade humana e adequado àquele sentimento de perturbação e sofrimento que a percepção do fim iminente produz inevitavelmente” (SB V,1).

ACOMPANHAMENTO PASTORAL E SACRAMENTOS

Ainda de acordo com o documento, a assistência espiritual deve ser parte dos chamados cuidados paliativos, uma vez que esta “infunde confiança e esperança em Deus ao moribundo e aos familiares, ajudando-os a aceitar a sua morte. É uma contribuição essencial que diz respeito aos agentes de pastoral e à inteira comunidade cristã, a exemplo do Bom Samaritano, para que a rejeição dê lugar à aceitação e sobre a angústia prevaleça a esperança” (SB V,4).

De igual modo, se ressalta que é fundamental “bem cuidar da preparação espiritual do doente para que chegue conscientemente à morte, entendida como encontro com Deus” (SB V,7); e que a Igreja é chamada a acompanhar espiritualmente os fiéis nesta situação, “oferecendo-lhes os ‘recursos sanantes’ da oração e dos sacramentos”; e que tal acompanhamento pastoral “chama em causa o exercício das virtudes humanas e cristãs da empatia (en-pathos), da compaixão (cum-passio), do responsabilizar-se pelo sofrimento e compartilhá-lo, e da consolação (cum-solacium), de entrar na solidão do outro para fazê-lo sentir-se amado, acolhido, acompanhado e apoiado” (SB V,10).

“O momento sacramental é sempre o ápice de o todo empenho pastoral de cuidado que o precede e fonte de tudo que o segue. A Igreja chama sacramentos ‘de cura’ [Catecismo da Igreja Católica – CIC 1420] a Penitência e a Unção dos Enfermos, que culminam na Eucaristia como ‘viático’ para a vida eterna [CIC 1524]. Mediante a proximidade da Igreja, o doente vive a proximidade de Cristo que o acompanha no caminho para a casa doPai (cf. Jo 14, 6) e o ajuda a não cair no desespero [Laudato si’ 235], sustentando-o na esperança, sobretudo quando o caminho se faz mais árduo [Evangelium vitae 67]”.

MESMO DIANTE DA MORTE, MANTER A ESPERANÇA

Na conclusão da Samaritanus Bonus, é lembrado que a Igreja aprende do Bom Samaritano “o cuidado com o doente terminal e obedece, assim, ao mandamento conexo ao dom da vida”, mas que não basta compartilhar a dor de quem sofre: “é preciso mergulhar nos frutos do Mistério Pascal de Cristo para vencer o pecado e o mal, com a vontade de ‘remover a miséria alheia como se se tratasse da própria’ [São Tomás de Aquino, Suma Teológica]. A maior miséria consiste, porém, na falta de esperança diante da morte. Esta é a esperança anunciada pelo testemunho cristão, o qual para ser eficaz deve ser vivido na fé, envolvendo a todos, familiares, enfermeiros, médicos e a pastoral das dioceses e dos centros hospitalares católicos”.

ELES CRERAM NA VIDA ETERNA

“Quanto a mim, estou a ponto de ser imolado e o instante da minha libertação se aproxima. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua aparição”.

“Quanto a mim, estou a ponto de ser imolado e o instante da minha libertação se aproxima. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua aparição”.

São Paulo Apóstolo, na 2ª carta a Timóteo 4, 6-8.

“Não vivi de tal modo que tenha vergonha de continuar vivendo, mas não tenho medo de morrer, porque temos um Senhor que é bom”.

Últimas palavras de Santo Ambrósio (340-397), Bispo e Doutor da Igreja

“Oh, Nossa Madre! Asseguro-vos: o cálice está cheio até a borda!… Mas o Bom Deus, com toda a certeza, não me abandonará! …Ele nunca me abandonou. Sim, meu Deus, tudo o que quiserdes, mas tende piedade de mim! Minhas irmãzinhas! Minhas irmãzinhas! Re- zai por mim! Meu Deus! Meu Deus! Vós que sois tão bom!!! Oh! Sim, sois bom! Eu o sei!”

Palavras de Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897), ditas em seu leito de dor, no último dia de vida, e registradas na caderneta amarela (Últimos Colóquios).

“Devemos nos preparar para isso [a morte]. Não no sentido de que agora você começa a realizar certos atos concretos, mas interna- mente, enquanto você vive, tenha em mente que deve se submeter a um exame final diante de Deus; de estar prestes a deixar este mundo e ter que se encontrar diante Dele e dos santos, diante dos amigos e de todos aqueles que não são amigos”.

Papa Bento XVI (1927-2022), no livro-entrevista “Conversas Finais” (2016)

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