Que a tecnologia sempre esteja a serviço do homem e não o contrário

Em Roma, Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida tratou sobre o resguardo da essência do ser humano diante dos avanços científicos e tecnológicos

Pontifical Academy for Life

Assegurar os aspectos essenciais do ser humano em uma época marcada pela velocidade dos avanços científicos e tecnológicos foi o foco das reflexões da assembleia geral da Pontifícia Academia para a Vida (PAV), realizada em Roma, entre os dias 12 e 14.

No evento em que também se celebrou os 30 anos de fundação deste organismo vaticano, o tema escolhido foi “Humano. Significados e Desafios”, abordado em debates e oficinas e também na audiência que os participantes tiveram com o Papa Francisco.

“A novidade das descobertas técnico-científicas às vezes produz um efeito de desorientação e uma sensação de precariedade que pode levar a opinião pública a posições negativas, à nostalgia de certezas que parecem desaparecer. É por isso que precisamos de um diálogo entre os saberes e uma visão da humanidade e de seu futuro, junto com uma reflexão ética sobre os produtos do conhecimento humano”, enfatizou Dom Vincenzo Paglia, presidente da PAV, em coletiva de imprensa.

Segundo ele, a PAV deseja propor “um serviço de esclarecimento, de reflexão atenta sobre o que é o humano comum. A Igreja tem as Sagradas Escrituras e uma tradição que oferece perspectivas extraordinárias sobre a dignidade do ser humano, que para nós está sempre ligado à família humana e ao cuidado da criação”, disse ao Vatican News, alertando para o risco atual de “esmagar a responsabilidade e a beleza do ser humano comum, transformando-o em um instrumento da economia ou da tecnologia”, sendo, assim, fundamental “combater a algocracia com a algoética, ou seja, não o homem a serviço da tecnologia, mas exatamente o contrário: a tecnologia a serviço do homem”.

O PERIGO DA HEGEMONIA TECNOCRÁTICA

Na audiência com os participantes, no dia 12, o Papa Francisco comentou que não é possível, a priori, ser “a favor” ou “contra” as máquinas e as tecnologias, nem considerar apenas os processos naturais como autenticamente humanos ou os artificiais como contrários à humanidade. “É preciso inscrever os saberes científicos e tecnológicos em um horizonte de sentido mais amplo, impedindo assim a hegemonia tecnocrática (cf. encíclica Laudato si’, 108)”. O Papa enfatizou ainda que o ser humano não deve ser reduzido “a um agregado de manifestações reproduzíveis a partir de uma linguagem digital, que pretende exprimir todo o tipo de informação por meio de códigos numéricos”.

Francisco alertou para uma crescente “tentação insidiosa” das pessoas em sentir-se protagonistas de um ato criador semelhante ao divino, e pediu que haja discernimento sobre “como a criatividade do homem confiado a si mesmo pode exercitar-se de modo responsável. Trata-se de investir os talentos recebidos, evitando que o ser humano seja desfigurado e que as diferenças constitutivas que ordenam o cosmos sejam anuladas (cf. Gn 1-3)”.

Para tal, segundo o Papa, é indispensável “desenvolver uma cultura que, integrando os recursos da ciência e da tecnologia, seja capaz de reconhecer e promover o humano em sua especificidade irrepetível”. Para isso, há dois caminhos a seguir: o de um intercâmbio transdisciplinar, com justaposição de saberes, escuta recíproca e reflexão crítica; e o do “procedimento sinodal”, com “atenção e liberdade de espírito, abertura para se aventurar em caminhos inexplorados e desconhecidos, libertando-se de todo ‘indietrismo’ estéril [prender-se ao passado e ser contra o moderno]”.

“O Santo Padre demonstrou que a questão fundamental refere-se ao que é distintivo no ser humano, o que faz com que não possa ser reduzido a esses incrementos que a tecnologia promove. Essa questão tem sido objeto de discussão ao longos dos séculos. O que a ciência tem demonstrado é que não se pode tomar uma posição, a priori, contra ou a favor dessas tecnologias, pois o importante é situar esse conhecimento científico e tecnológico em um horizonte mais amplo de sentido, de modo a não permitir a hegemonia de um paradigma tecnocrático sobre o ser humano”, comentou, ao O SÃO PAULO, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, membro da PAV desde 2019 e integrante da Academia Fides et Ratio da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

A PRIMAZIA DA DIGNIDADE HUMANA

Ribeiro, que é Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e em Teoria Geral do Direito pela USP e que já foi ministro da Justiça, destacou que os apontamentos do Papa ressoaram no evento, no sentido “de mostrar a primazia da dignidade humana nas relações que se estabelecem com as novas tecnologias”.

Uma das palestras, conduzida pelo neurologista e neurocientista Olaf Blanke, tratou sobre os desafios éticos perante os avanços da neurociência. Se, por um lado, a neurotech tem proporcionado progressos nos tratamentos da doença de Parkinson, depressão e deficiências motoras, por outro há incertezas sobre o efetivo controle ético da ferramenta Deep Brain Stimulation (DBS), para estimulação cerebral profunda, e do quanto esta será acessível para uma ampla gama de pessoas e não somente para algumas.

Outra questão lembrada por Ribeiro acerca da palestra de Blanke é se estes instrumentos neurotecnológicos serão apenas usados para restaurar a memória ou também para incrementar o desempenho de algumas pessoas; além do risco de provocarem modificações de identidade. “O que se pergunta é: a tecnologia neural que conserta, repara, modifica e incrementa a memória de uma pessoa também altera a sua identidade? Isso poderá levar a uma alteração da percepção de sentido da própria pessoa ou da autopercepção da sua identidade?”, destacou.

Outra palestra mencionada pelo brasileiro membro da PAV foi a de Carter Snead, um dos maiores especialistas do mundo em bioética e neuroética, que também versou sobre os riscos de as ações sobre o cérebro modificarem a própria identidade humana.

“A temática que o professor Carter expõe é a de que os seres humanos são dotados de corpo e de uma psicofisiologia integrada, unidades da mente e do corpo, que estão sujeitas a uma finitude, vulnerabilidade, mas, sobretudo, sujeitas a uma construção relacional, isto é, todo o raciocínio bioético deve partir de uma preocupação não mais simplesmente individual, mas do ser humano com base nas relações que ele estabelece. Em outras palavras, não se pode reduzir a percepção sobre o ser humano aos seus sentimentos íntimos, mas, sim, como um ser individual e que também necessita da interação social para que possa florescer a dimensão humana do seu ser”.

CAUTELA E NÃO TEMOR QUANTO À IA

Também palestrante na assembleia da PAV, o físico britânico Jim Al-Khalili ponderou que a Inteligência Artificial (IA) não deve ser vista como um perigo à humanidade, mas usada com cautela.

“Há muitos desafios e, possivelmente, até ameaças existenciais que enfrentamos diante dos rápidos avanços da Inteligência Artificial, mas ela nunca será capaz de pensar ou sentir como um ser humano, pois o que nos torna humanos vai além das nossas conexões neurais. É mais do que nossa inteligência, intuição ou criatividade, que provavelmente um dia serão replicadas em formas de Inteligência Artificial. O que nos torna exclusivamente humanos é também o nosso comportamento e a nossa interação com o ambiente físico circunstante, nossas relações recíprocas dentro de estruturas coletivas e sociedades complexas; são nossas culturas e crenças compartilhadas, nossa história, nossas recordações”, enfatizou na coletiva de imprensa.

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