Bem comum: uma nova chave de leitura de um constante manifesto

Alguns anos atrás, na Europa, estudiosos do Direito Civil publicavam manifestos sobre o bem comum, de modo a levantar a voz e chamar a atenção de todos contra a voracidade dos processos de privatizações dos bens não sujeitos, em sua percepção, à apropriação privada ou do próprio Estado.

Esses estudiosos colocavam à luz do Direito privatizações da saúde, da educação, da água potável, das florestas e até de praças, lugares comuns à convivência social. Algo não lhes parecia correr nos trilhos.

Esse manifesto não nos é estranho por aqui e, há muito tempo, no Brasil, vem empobrecido por uma discussão de Welfare State versus neoliberalismo, por polêmicas ideológico-partidárias ou por argumentos sobre a constante escassez de recursos de um Estado em permanente crise fiscal. Se todo o manifesto pelo bem comum não nos é estranho, parece também fácil identificar que nessa acepção jurídica do bem comum há um claro empobrecimento ou reducionismo.

Os óculos do jurista, com a gradação da realidade legislativa, acabam sempre por limitar a realidade à sua moldura simplista. Não está correto, mas também não poderia ser muito diferente, quando o Direito, ao mediar relações, é incapaz, por si só, em sua fotografia da realidade, de adentrar numa necessária profundidade moral.

Pensar no bem comum a partir da perspectiva da dogmática jurídica é pensar de forma muito restritiva nos bens pelos bens, na esteira do Código Civil – ordenamento do homem comum –, que acaba por só tratar os bens em si mesmos ou em sua recíproca relação. Quando assim procede, deixa de olhar o essencial da realidade humana e não logra êxitos em adentrar, com profundidade, nos fundamentos e exigências de um verdadeiro bem comum.

Se o bem comum, ou melhor, o princípio do bem comum, não é algo criado pelo Direito, mas apenas mediado pelo Direito, deve ser interpretado, nessa tentativa de compreensão da realidade, a partir de aspectos fundamentais da vida social e da pessoa humana. Não há que se pensar no bem comum por si mesmo ou no bem meramente relacionado a outro bem.

Nesse sentido, a Doutrina Social da Igreja sempre foi prolífica em colocar esse princípio do bem comum e tantos outros a serviço da dignidade humana. E aqui está uma excelente chave de leitura da ordenação social. Não importa se o bem é público ou privado, singular ou coletivo, móvel ou imóvel, mas importa que o bem sirva a um propósito universal, permanente  no tempo e no espaço, orientador de um agir comum. Portanto, não é possível pensar no bem comum a partir de sua materialidade pública, estatal ou privatizada, mas como um princípio ordenador da vida social e bem articulado com o fim último da vida humana, algo de uma intensa profundidade não só jurídica, mas também moral.

Com esse tom ou com essa chave de leitura, talvez o manifesto do bem comum ganhe mais cor e mais vida. Em vez de reduzir o manifesto do bem comum a uma superficial problematização da privatização versus socialização dos bens, leva a observar a decisão a partir do propósito do bem comum: um emprego adequado do bem, seja socializado, seja privatizado, com responsabilidade de todos em sua fruição, dado um adequado direcionamento à liberdade individual ou ao dever estatal e um foco na dignidade da pessoa humana e na dimensão comunitária do bom viver. Se isso se verifica, esse tom ou essa chave de leitura acaba por nos direcionar ao que realmente importa: a promoção integral da vida e a pacificação ou a harmonização social, somadas a tão relevantes direitos fundamentais do homem: saúde, alimentação, moradia digna, educação e trabalho.

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