Foi demarcada para mim a melhor terra, e eu exulto de alegria em minha herança!

Já é um costume consolidado que a Igreja no Brasil dedique o mês de agosto às vocações – mas no caso especial de 2023, o ano inteiro foi escolhido como Ano Vocacional para rezarmos mais e tomarmos maior consciência da importância do chamado particular que Deus dirige a cada um de nós na Igreja. É significativo que este mês tão especial seja inaugurado com uma semana de oração pelas vocações sacerdotais – não tanto por serem mais valiosas que as demais, mas pelo contexto de crise de sentido que o sacerdócio católico vem experimentando já há várias décadas.

Os últimos Papas têm estado atentos a este cenário: nos anos 90, São João Paulo II escreveu a famosa Pastores Dabo Vobis sobre a formação dos sacerdotes nos dias atuais; Bento XVI proclamou todo um Ano Sacerdotal em 2009-2010, com a bela “Carta aos Seminaristas”; e o Papa Francisco frequentemente aborda o tema, por exemplo, com a carta “Sacerdotes com o coração de Cristo”, publicada no aniversário de 160 anos da morte de São João Maria Vianney, o padroeiro dos padres.

As turbulências que agitam o sacerdócio católico são sobretudo ligadas à sua identidade: em que consiste, afinal, o ser padre? Num mundo em que tudo muda tanto e tão rápido, haveria ainda algo de essencial e belo na figura do sacerdote?

O Catecismo nos lembra de que nós cristãos, desde o tempo dos apóstolos, sempre enxergamos uma unidade profunda entre o Antigo e Novo Testamento, e enxergamos, naquilo que Deus fez com o povo de Israel, prefigurações do que Ele viria a fazer com a Igreja (nn. 128-130). Por isso mesmo, a figura dos levitas, a tribo sacerdotal do povo de Israel, pode nos iluminar sobre a missão e identidade do padre.

Em Israel, cada família recebia em herança uma porção da Terra Santa, não só como meio de sustento, mas principalmente como sinal de participação na Aliança com Deus. A importância espiritual dessa herança recebida dos pais pode ser vista na história de Nabot, que recusou terminantemente as ofertas do rei Acab de trocar sua terra por outra melhor – e por isso foi assasinado a mando do iníquo rei (1Re 21).

Alguns israelitas, no entanto, não recebiam nenhuma porção de terra: os levitas, membros da tribo sacerdotal. O sacerdote levita não possuía nenhuma terra própria que pudesse cultivar para seu sustento, e assim, vivia apenas de Deus e para Deus. Era uma renúncia alegre: para o levita, o próprio Deus era sua porção hereditária, e, paradoxalmente, aquele que não possuía terra alguma cantava, cheio de júbilo: “Foi demarcada para mim a melhor terra, e eu exulto de alegria em minha herança” (Ps 15, 5-6).

Nas comunidades cristãs, essa vivência de Deus e para Deus foi desde cedo aplicada aos sacerdotes, que deviam dedicar sua vida inteira ao serviço do Evangelho. É significativo que o relato da vocação dos apóstolos faça notar que eles “largaram tudo” (Lc 5, 11) para seguir Jesus, e que o próprio Pedro tenha questionado a Jesus, “Senhor, eis que deixamos tudo para te seguir” (Mt 19, 27).

É essa a identidade do sacerdote católico, o largar tudo para receber o próprio Cristo em herança – e é isso que vimos na vida dos santos sacerdotes. Na vida de um Cura d’Ars, que, qual vela acesa que se deixa queimar até o fim, fez de sua vida inteira uma contínua oferta a Deus e às almas, em intermináveis horas de confessionário, penitências e orações. Na vida de um Padre Pio, que entregou a Deus até mesmo sua honra e boa-fama, obedecendo filialmente à autoridade de seus superiores hierárquicos, mesmo diante de perseguições injustas.

Não é à toa que a Igreja pede que os padres rezem aquele Salmo sacerdotal todas as quintas-feiras, logo antes de dormir: é a noite em que foi instituído o sacerdócio e a Sagrada Eucaristia. Abrindo seu breviário depois das fadigas e labutas do dia, o padre eleva a Deus seu coração: “Somente vós sois meu Senhor: nenhum bem eu posso achar fora de vós! Ó Senhor, sois minha herança e minha taça, meu destino está seguro em vossas mãos! Foi demarcada para mim a melhor terra, e eu exulto de alegria em minha herança!”

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