O tempo da morte e o tempo dos vivos

A morte é um grande espelho da vida. Diante dela, intuímos a grandeza e a miséria de nosso ser, a força e a futilidade de nossas pretensões éticas. Mas, do mesmo modo, a vida é um grande espelho da morte. Olhando para nossa vida, intuímos – de forma acertada ou não – o que será nossa própria morte. A partir da morte, compreendemos melhor o sentido da vida; mas é a partir da experiência da vida que nos lançamos no desafio de compreender a morte.

O tempo da morte não pode ser evitado. Acompanha a todo vivente, espreitando-o nas sombras de cada afeto, de cada vínculo com o real. Quanto mais tentamos reduzi-lo ou afastá-lo, mais retorna e cresce, transmutado em tempo do nada, do vazio e da falta de sentido.

Um dos grandes pensadores franceses convertidos ao catolicismo no século XX, Olivier Clément, conta que na família de seus avós paternos, socialistas ateus, os moribundos eram levados para morrer em casa e velava-se os mortos numa vigília “quase insuportável, diante do nada” (L’autre soleil, Paris: Edições Stock, 1975). Neste rito fúnebre aparentemente sem sentido, sem o consolo da esperança da vida eterna, se conservava, segundo o autor, a certeza de que aquele morto fora um indivíduo único, que a sua vida havia sido única. Clément lembra ainda que, quando pequeno, perguntou a seu pai – um professor ateu – por que se vive e por que se morre. E este lhe respondeu: “Quando se morre, é o nada. Mas mesmo assim precisamos procurar ser bons e justos” – e a criança intuiu, pela primeira vez, que deveria existir mais alguma coisa, para que o bem e a justiça fizessem sentido.

Tudo que existe está fadado a deixar de ser. Para não enfrentarmos esta dolorosa realidade, temos que – de algum modo – esquecer a própria natureza das coisas. A alternativa à convivência com a morte é a mutilação do real, sua transformação em ilusão que leva, em última instância, não à vida plena, mas ao nada, como afirmavam os adultos que cercavam o pequeno Olivier Clément.

Não é sábio fixar-se na ideia da morte, deixar a vida consumir-se no medo do fim último. Não se pode deixar de viver o presente, com sua beleza e riqueza, miséria e dor, em função da expectativa de um incerto porvir. Porém, o sentido, a meta, é um elemento inerente ao próprio presente. O amanhã de qualquer coisa já começa a se apresentar no seu hoje. Por isso, a reflexão que procura encontrar o justo lugar da morte no conjunto da realidade é indispensável, e o esforço voluntarista de anular o futuro em razão do presente é vão – mesmo que feito com todo o conhecimento e toda a sagacidade filosófica.

Nossa vida social se passa no tempo profano, mas o tempo da morte é o tempo do fanum, da manifestação do mistério. As sociedades podem criar ou censurar as manifestações rituais e artísticas que as ligam ao mistério presente na realidade. As hierofanias – enquanto fenômenos culturais pelos quais o sagrado se manifesta – podem ser controladas pelo poder e pela vontade. Entretanto, a hierofania que acontece no tempo da morte não pode ser evitada, mas apenas ocultada ou “esquecida” – para retornar, soberana e impiedosa, como tempo do nada, do vazio e da falta de sentido, que se espalha por toda parte, como o líquido que se esvai de uma garrafa quebrada.

Por um momento, que pode ser um instante fugidio em meio às atribulações inevitáveis que cercam a morte de um conhecido, ou o longo tempo do luto que se segue àquela perda considerada irreparável, a morte abre nossos olhos para o mistério da vida. O véu do templo se rasga e o enlutado, ainda aparentemente entre os outros, ainda aparentemente caminhando na banalidade do mundo, se desloca para o fanum, para o espaço sagrado onde toda a realidade se mostra tal como é.

As celebrações do Dia de Finados são um tempo propício para refletirmos sobre o sentido cristão da morte, recuperarmos positivamente tanto as lembranças e os afetos de nossos mortos quanto uma alegre esperança por nossa comunhão definitiva nos braços do Pai.

Para ajudar nessa tarefa, trazemos uma homilia do Papa Francisco e uma reflexão de nossa colaboradora monja camaldulense. Além disso, agradecemos a Communio, Revista de Teologia e Cultura, que nos permitiu a publicação de dois trechos de artigos (O realismo humano e o sentido cristão da morte e A morte na percepção do velho Simeão) de uma edição internacional sobre a morte, publicada em 2012. Por fim, o professor Rafael Ruiz nos indica um filme belo e sensível, que narra a experiência de uma criança diante do mistério da morte.

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