Novo documento do Vaticano ressalta o compromisso dos bispos pela unidade dos cristãos

Papa Francisco, em encontro com líderes cristãos, em Assis (Foto: Vatican Media)

“O Bispo e a unidade dos Cristãos: vademecum ecumênico” é o título do novo documento publicado pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, publicado nesta sexta-feira, 4, no Vaticano.

Na conferência de apresentação do texto, na Sala de Imprensa da Santa Sé, o Cardeal Kurt Koch, Presidente desse Pontifício Conselho, explicou que o documento tem o objetivo de ser “um guia, uma bússola ou como um companheiro de viagem”, para o caminho ecumênico dos bispos em suas próprias dioceses. 

A elaboração do documento durou cerca de três anos, sendo que um primeiro esboço, preparado por membros do Pontifício Conselho com a consulta a especialistas, foi apresentado em 2018. E seguida, o texto foi enviado a diferentes dicastérios da Cúria Romana, que deram suas contribuições.

O manual foi aprovado pelo Papa Francisco que, em maio, anunciou sua publicação em uma carta enviada ao Cardeal Koch, na comemoração dos 25 anos da Encíclica Ut unum sint (Que sejam um), de São João Paulo II, sobre o empenho ecumênico da Igreja.  

As diretrizes desse Vademecum são baseadas em diferentes documentos e textos eclesiásticos sobre o tema, com destaque para o Decreto Unitatis redintegratio, do Concílio Vaticano II, a Encíclica Ut unum sint, além do “Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo” (1993), e “A dimensão ecumênica na formação de quem se dedica ao ministério pastoral” (1997), ambos do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

Ao episcopado

O Cardeal Koch destacou que, embora o Diretório ecumênico de 1993 seja o principal documento de referência para a tarefa ecumênica de toda a Igreja, faltava um texto destinado especificamente aos bispos para a realização dessa responsabilidade própria de seu ministério.

“O Bispo não pode considerar a promoção da unidade dos cristãos simplesmente como uma das muitas tarefas do seu ministério, tarefa que poderia ou deveria ser sobreposta por outras prioridades aparentemente mais importantes. O compromisso ecumênico do Bispo não é uma dimensão opcional do seu ministério, mas um dever e uma obrigação”, salientou o Cardeal.

Cardeal Kurt Koch, na apresentação do Vademecum ecumênico

Citando o Decreto Unitatis redintegratio, a introdução do Vademecum recorda que o Concílio sublinhou que a divisão entre as acomunidades cristãs “não só se opõem abertamente à vontade de Cristo, mas também um escândalo ao mundo e prejudica a mais sagrada das causas: a pregação do Evangelho a toda criatura”

O manual reitera que, enquanto pastor do rebanho, o Bispo tem a responsabilidade específica de mantê-lo em unidade, pois, como afirma a Constituição Dogmática Lumen gentium, o Bispo é “o princípio e fundamento vivível da unidade na sua igreja particular”.

Estrutura do documento

O Vademecum é dividido em duas partes: “A promoção do ecumenismo na Igreja Católica” e “As relações da Igreja Católica com outros cristãos”.

Após cada sessão, há o elenco de recomendações práticas de forma resumida para serem promovidas em âmbito local ou regional. Por fim, o documento apresenta um apêndice com a uma breve descrição dos parceiros da Igreja Católica nos diálogos teológicos internacionais bilaterais e multilaterais e dos principais frutos já colhidos.

O documento foi publicado, até o momento, em italiano, inglês, francês e espanhol. Em breve, será traduzido oficialmente para outros idiomas, inclusive o português. Acesse aqui.

A seguir, O SÃO PAULO apresenta os principais destaques do novo documento:

Desafio da Igreja

A primeira parte apresenta aquilo que é pedido à Igreja para o cumprimento de sua missão ecumênica. O texto sublinha que “a busca da unidade é antes de tudo um desafio para os católicos”.

Assim como no Decreto Christus Dominus, do Concílio Vaticano II, o Vademecum descreve o Bispo como um homem do diálogo, que vai ao encontro das pessoas de boa vontade na busca comum da verdade, com uma capacidade de diálogo marcada pela clareza e humildade, em um espírito de caridade e amizade. “A tarefa ecumênica do bispo é, portanto, promover o ‘diálogo da caridade’ e o ‘diálogo da verdade’, sublinha o texto.

O manual reforça a recomendação da nomeação de um delegado diocesano para o ecumenismo, que colabore estreitamente com o Bispo e o aconselhe sobre o tema, como já é previsto pelo Diretório Ecumênico. Propõe, ainda, que seja criada uma comissão diocesana para o ecumenismo para assistir o Bispo na realização dessa tarefa. De igual modo, as conferências episcopais e os sínodos das igrejas católicas orientais, devem ter comissões encarregadas do ecumenismo.

Formação

No âmbito da formação, o novo documento sublinha a necessidade da adequada formação dos clérigos e fiéis da diocese sobre a relação com outros cristãos.

Unitatis redintegratio §11 recomenda que todos os que se empenham no diálogo ecumênico enfrentem esta tarefa ‘com amor à verdade, com caridade e humildade’. Essas três disposições fundamentais devem estar no centro da formação ecumênica de todo o povo de Deus.

Ainda sobre a formação, o texto lembra que o fundamento da formação ecumênica é que “a fé católica deve ser explicada com maior profundidade e exatidão, com uma forma de exposição e uma linguagem que possa ser compreendida também por irmãos separados”.

Conversão interior

Outro aspecto ressaltado pelo Concílio que é recordado no Vademécum é sobre a insistência de que O Concílio Vaticano II insistiu que “não há verdadeiro ecumenismo sem conversão interior”.

Uma atitude adequada de humildade permite aos católicos apreciar ‘o que Deus faz por aqueles que pertencem a outras Igrejas e Comunidades eclesiais’ , o que por sua vez nos ajuda a aprender e receber dons de nossos irmãos e irmãs. A humildade também é necessária quando, graças ao encontro com outros cristãos, vem à luz uma verdade ‘que pode exigir revisões de declarações e atitudes’ .

Papa Francisco reza com líderes cristãos diante do túmulo do Apóstolo São Paulo (Foto: Vatican Media)

Mídias

Sobre o uso das mídias, o documento reforça que “a presença católica na mídia deve demonstrar a estima que os católicos têm por seus irmãos e irmãs cristãos, e sua disponibilidade para ouvir os outros e ansiosos por aprender deles”.

De maneira prática, o texto recomenta que os sites das dioceses na internet devem facilitar o acesso dos usuários tanto ao delegado quanto à comissão diocesana para o ecumenismo. De igual modo, que seja disponibilizado os links para o acesso à comissão ecumênica da conferência episcopal, assim como o Pontífício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos

Ecumenismo espiritual

A segunda parte do Vademecum examina maneiras pelas quais a Igreja Católica interage com outras comunidades cristãs. A primeira delas é o ecumenismo espiritual, definido pelo Concílio como a “alma do movimento ecumênico”.

O ecumenismo espiritual consiste não só na oração pela unidade dos cristãos, mas também na ‘conversão do coração e na santidade de vida’ (UR §8). Com efeito, ‘todos os fiéis devem recordar que tanto melhor promoverão e até realizarão a unidade dos cristãos quanto mais se esforçarem por levar uma vida mais conforme o Evangelho’.

O texto recorda, ainda, que o ecumenismo espiritual requer “conversão e reforma”, como afirma o Papa Bento XVI: “São necessários gestos concretos que entrem na mente das pessoas e mexam com as consciências, incitando todos àquela conversão interior que é a condição prévia para todo progresso no caminho do ecumenismo”.

Sobre a oração com outros cristãos, o documento reafirma que os católicos não apenas podem como devem buscar ocasiões para essa prática.

Algumas formas de oração são particularmente adequadas à busca da unidade cristã. Tal como recitamos o Pai Nosso no final do rito do baptismo, reconhecendo assim a dignidade adquirida de filhos de um só Pai, convém recitar a mesma oração com os outros cristãos com quem partilhamos o batismo.

Celebração ecumênica na Catedral Ortodoxa de São Paulo, em 2016 (Foto: Casa da Reconciliação)

Nesse sentido, o Vademecum recorda a Semana de Oração, celebrada no hemisfério Norte entre as festas da Cátedra de São Pedro (18 de janeiro) e da Conversão de São Paulo (25 de janeiro); e no hemisfério Sul, entre as solenidades da Ascensção do Senhor e Pentecostes.

Rezar uns pelos outros e pelas necessidades do mundo é outro aspecto salientado pelo manual como expressão do ecumenismo espiritual.

Os cristãos podem manifestar seu compromisso comum celebrando juntos eventos e aniversários significativos na vida de sua comunidade e orando juntos por suas necessidades específicas. Mesmo realidades mundiais como a guerra, a pobreza, o drama dos migrantes, a injustiça e a perseguição aos cristãos e outros grupos religiosos requerem a atenção dos cristãos que podem se unir em oração pela paz e pelos mais vulneráveis.

Sagrada Escritura

O Vademecum destaca, em particular, a importância da Sagrada Escritura no diálogo ecumênico, quando recomenda que sejam feitos todos os esforços para encorajar os cristãos a lerem as escrituras juntos, o que fortalece o vínculo de unidade entre os cristãos e “abre-os à ação unificadora de Deus e fortalece o testemunho comum da palavra de Deus”.

Os católicos compartilham as Sagradas Escrituras com todos os cristãos e, com muitos deles, até um mesmo lecionário dominical. Esta herança bíblica comum oferece várias oportunidades para encontros e intercâmbios de oração baseados nas escrituras, para lectio divina, para publicações e traduções compartilhadas, e também para peregrinações ecumênicas aos lugares sagrados da Bíblia.

Do mesmo modo, o texto lembra a possibilidade do compartilhamento de outras tradições religiosas e dos principais momentos do tempo litúrgico, especialmente o Natal, a Páscoa e Pentecostes e, em alguns casos, o Advento e a Quaresma.

Ecumenismo dos santos

Outro modo de ecumenismo ressaltado pelo manual é o chamado “ecumenismo dos santos, dos mártires”, que, nas palavras de São João Paulo II é, talvez, o mais convincente. “Nossas Igrejas já estão unidas pela comunhão que os santos e mártires compartilham. A devoção comum a um santo, a um santuário ou a uma determinada imagem pode se tornar ocasião de peregrinação, procissão ou celebração ecumênica. Os católicos em geral, e os bispos católicos em particular, podem fortalecer os laços de unidade com outros cristãos encorajando devoções comuns que já existem”, recomenda o documento.

Em algumas partes do mundo, os cristãos são vítimas de perseguição. O Papa Francisco fala frequentemente do ‘ecumenismo de sangue’. Aqueles que perseguem os cristãos, muitas vezes, reconhecem a unidade que existe entre eles melhor do que os próprios cristãos. Ao honrar os cristãos de outras tradições que sofreram o martírio, os católicos reconhecem as riquezas que Cristo derramou sobre eles e das quais dão um poderoso testemunho.

Purificação da memória

O Vademecum chama a atenção para a expressão “purificação da memória”, que remonta o Vaticano II. No penúltimo dia do Concílio (7 de dezembro de 1965), em uma declaração conjunta, São Paulo VI e o Patriarca de Constantinopla Atenágoras “retiraram da memória” da Igreja as excomunhões mútuas de 1054.

Na Encíclica Ut unum sint, São João Paulo II sublinha a necessidade de superar “certas recusas a perdoar”, “aquele fechamento não evangélico da condenação dos ‘outros’” e “um desprezo que deriva de uma presunção doentia”.

A memória de muitas comunidades cristãs permanece ferida por uma história de conflitos religiosos e nacionais. No entanto, quando comunidades separadas por divisões históricas conseguem chegar a uma releitura comum da história, então uma reconciliação de memórias se torna possível.

Celebração ecumênica durante Assembleia Geral da CNBB, em 2019
(foto: Conic)

Diálogo da caridade

Outra via ecumênica indicada pelo Vademecum é o diálogo da caridade, que trata da promoção de uma “cultura do encontro” ao nível dos contatos e da colaboração quotidiana, alimentando e aprofundando a relação que já une os cristãos em virtude do batismo.

O documento faz algumas recomendações práticas a esse respeito; por exemplo, assistir, na medida do possível e oportunamente, às liturgias de ordenação ou instalação dos dirigentes de outras Igrejas, para convidá-los para as celebrações litúrgicas e outros eventos significativos da Igreja Católica.

Os católicos não devem esperar que outros cristãos se aproximem deles, mas devem estar sempre dispostos a dar o primeiro passo em direção aos outros. Esta ‘cultura do encontro’ é o pré-requisito de qualquer ecumenismo autêntico.

Diálogo da verdade

A terceira via é o diálogo da verdade, que se refere à busca da verdade de Deus que os católicos empreendem junto com outros cristãos por meio do diálogo teológico. Nesse trecho, são mencionados alguns princípios do diálogo como troca de dons, do diálogo teológico que “não busca um mínimo denominador comum teológico sobre o qual se possa chegar a um compromisso, mas se baseia no aprofundamento de toda a verdade”.

O diálogo da verdade conduzido ao nível nacional e diocesano pode desempenhar um papel particularmente importante no que diz respeito ao significado e à celebração válida do batismo. As autoridades de algumas Igrejas locais puderam formular declarações conjuntas que expressam o reconhecimento mútuo do batismo. Outros grupos de trabalho e iniciativas ecumênicas também podem oferecer uma contribuição valiosa para o diálogo da verdade.

Diálogo da vida

Por fim, o manual indica a via do diálogo da vida, que se refere a oportunidades de intercâmbio e colaboração com outros cristãos em três campos principais: pastoral, testemunho ao mundo e cultura.

No que diz respeito ao ecumenismo pastoral, o Vademecum trata de temas como a colaboração no campo da missão e da catequese, os casamentos mistos (entre pessoas de diferentes igrejas cristãs), e vida sacramental.

Sobre os matrimônios mistos, cuja concessão é dada pelo Bispo, o documento reitera que esses não devem ser considerados um problema, “porque muitas vezes são um lugar privilegiado para a construção da unidade cristã”, como enfatiza São João Paulo II na exortação apostólica Familiaris consortio. “No entanto, os pastores não podem ficar indiferentes ao sofrimento que a divisão dos cristãos causa nessas famílias, sem dúvida mais agudo do que em qualquer outro contexto”, acrescenta.

O cuidado pastoral das famílias cristãs interconfessionais deve ser considerado tanto ao nível diocesano como regional, desde a preparação inicial do casal para o matrimônio até o acompanhamento pastoral no nascimento dos filhos e na preparação para os sacramentos. Um esforço particular deve ser feito para envolver essas famílias nas atividades ecumênicas paroquiais e diocesanas.

Partilha sacramental

O documento, recorda que a Igreja Católica compartilha uma comunhão real com outros cristãos em virtude do batismo. Entretanto, reconhece que a questão da administração e recepção dos sacramentos, em particular da Eucaristia, nas celebrações litúrgicas de ambos permanece um motivo de grande tensão nas relações ecumênicas.

Ao abordar essa questão o Diretório Ecumênico de 1993 se inspira em dois princípios básicos enunciados na Encíclica Unitatis redintegratio, que coexistem em certa tensão e devem ser sempre considerados juntos: o primeiro princípio é que a celebração dos sacramentos em uma comunidade “expressa a unidade da Igreja”; o segundo princípio é que um sacramento é uma “participação nos meios da graça”.

Nesse sentido, o Vademecum ressalta que “a comunhão eucarística está inseparavelmente ligada à plena comunhão eclesial e à sua expressão visível” e, portanto, à participação nos sacramentos da Eucaristia, da reconciliação e da unção dos enfermos devem ser reservados, em geral, àqueles que estão em plena comunhão.

No entanto, aplicando o segundo princípio, o manual recorda que o Diretório citado prossegue afirmando que “em certas circunstâncias, a título excepcional e sob certas condições, a admissão a estes sacramentos pode ser autorizada e mesmo recomendada aos cristãos de outras Igrejas e Comunidades eclesiais”, conforme é previsto pelo Código de Direito Canônico (cânon 844) e o Código dos Cânones das Igrejas Orientais (cânon 671). Concretamente, essa prática conhecida como communicatio in sacris costuma existir, em casos pontuais, nas realidades das igrejas orientais ortodoxas, em lugares  marcados por perseguições e impossibilidade da participação dos fiéis católicos nas suas respectivas comunidades.

Ecumenismo prático

O Vademecum trata da colaboração a serviço do mundo e do diálogo inter-religioso como um desafio ecumênico. Aborda, ainda, o ecumenismo cultural, em particular, por meio de projetos conjuntos nos campos acadêmico, científico e artístico.

Como discípulos de Cristo, formados pelas Escrituras e pela tradição cristã, somos movidos a agir em defesa da dignidade da pessoa humana e da santidade da criação, na firme esperança de que Deus conduza toda a criação à plenitude do seu Reino. Trabalhando juntos em ações sociais e projetos culturais, promovemos uma visão cristã integral da dignidade da pessoa. Nosso serviço comum, portanto, manifesta nossa fé compartilhada para o mundo, e nosso testemunho é ainda mais forte por ser oferecido em conjunto.

Na conclusão, o documento reitera que as recomendações práticas e as iniciativas sugeridas são instrumentos com os quais a Igreja, e em particular o Bispo, pode se comprometer a “tornar efetiva a vitória de Cristo sobre a divisão dos cristãos”.

“A abertura à graça de Deus renova a Igreja e, como ensina a Unitatis redintegratio, esta renovação é o primeiro passo indispensável para a unidade. A abertura à graça de Deus implica a abertura aos nossos irmãos e irmãs cristãos e, como escreveu o Papa Francisco, a vontade de colher o que o Espírito semeou neles também como um dom”, conclui.

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