Catolicismo no México foi fecundado pelo sangue das testemunhas de Cristo Rei

São José Luis Sánchez del Río, martirizado aos 14 anos e canonizado em 2016

Um dos períodos mais sangrentos da perseguição religiosa no século XX, a chamada Guerra Cristera, ocorrida no México entre 1926 e 1929, é também um dos exemplos de quando as lutas pela fé e pela liberdade se tornam uma só.

Durante o II Simpósio Missionário do Seminário Arquidiocesano de São Paulo, realizado virtualmente, entre os dias 4 e 8, Dom Carlos Silva, OFMCap, Bispo Auxiliar da Arquidiocese na Região Brasilândia, falou aos seminaristas sobre a rebelião provocada pelos católicos mexicanos, diante do rigor das leis que impediam a manifestação pública da fé nesse país. 

Frade Capuchinho, Dom Carlos atuou como missionário no Norte do México, na fronteira com os Estados Unidos, entre 2004 e 2013. Ele ressaltou que a fé cristã no México foi especialmente fecundada pelo sangue de mártires cristeros no início do século XX.  

Constituição anticlerical 

Em 1917, foi promulgada no México, país predominantemente católico, uma Constituição que estabeleceu uma política que negava a personalidade jurídica às igrejas, além de impor inúmeras restrições. 

O artigo 24º da Constituição Mexicana proibia o culto em público fora das igrejas, enquanto o inciso II do artigo 27º restringia os direitos de propriedade das organizações religiosas. Já o artigo 130º retirava aos membros do clero direitos cívicos básicos: padres e líderes religiosos estavam proibidos de usar os seus hábitos, não tinham direito de voto e estavam proibidos de comentar assuntos da vida pública na imprensa.

A legislação previa, ainda, a nacionalização das propriedades eclesiásticas, a supressão das ordens religiosas, a proibição de estabelecer conventos, fraternidades, a secularização dos cemitérios, entre outras medidas. Dom Carlos relatou que, nessa época, muitas religiosas foram forçadas a deixar os conventos e  mosteiros onde viviam.

Conflitos 

Em 1924, com a eleição do presidente Plutarco Calles, declaradamente ateu e membro da maçonaria, a nova Constituição passou a ser aplicada com maior rigor, a ponto de ser conhecida como a “Lei de Calles”, com o objetivo de erradicar o catolicismo do país. 

Em resposta a estas medidas, a resistência das organizações católicas começou a se intensificar. As mais importantes dessas organizações eram a Liga Nacional de Defesa da Liberdade Religiosa, a Associação Mexicana da Juventude Católica e a União Popular, um partido político católico fundado em 1925.

No começo, os fiéis e a hierarquia católica organizaram protestos pacíficos em resistência às medidas. Um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas foi apresentado ao Congresso para pedir a abolição da “Lei de Calles”. Todas as iniciativas foram ignoradas. Os grupos de resistência impulsionaram então um boicote econômico de sucesso. Ao ver os efeitos da organização dos católicos, o governo resolveu endurecer seus ataques contra a Igreja mediante prisões, intimidações e até execuções.

Intervenção de Pio XI

Como a Igreja não conseguiu chegar a nenhum acordo com o regime de Calles, os bispos mexicanos pediram a autorização do Papa Pio XI para suspender o culto católico em 31 de julho de 1926, véspera da entrada em vigor da lei, a fim de evitar enfrentamentos e derramamento de sangue.

Como resposta, o Pontífice escreveu a encíclica Iniquis afflictisque, na qual denunciou as agressões sofridas pela Igreja no México: “Já quase não resta liberdade alguma à Igreja [no México], e o exercício do ministério sagrado se vê de tal maneira impedido, que é castigado, como se fosse um delito capital com penas severíssimas”, manifestou Pio XI.

Rebelião 

Diante da repressão violenta, iniciou-se uma resistência armada por parte de grupos católicos denominados cristeros, que logo se espalharam por todo o país, transformando-se em uma verdadeira guerra civil. Seu grito de batalha era “Viva Cristo Rei! Viva a Virgem de Guadalupe!”.

“Durante a Guerra dos Cristeros, um número impressionante de pessoas morreu. Algumas estimativas apontam para o número de 250 mil mortos, entre civis, membros das forças cristeras e do exército mexicano”, destacou Dom Carlos, recordando que muitos dos cristeros eram torturados e mortos, tendo seus corpos expostos em locais públicos, como forma de intimidar aqueles que se opunham às imposições do governo.

Fuzilamento de sacerdote mexicano, durante Guerra Cristera, entre 1926 e 1929

Mártires 

Entre os mártires da Cristiada, destacam-se o Beato Anacleto González Flores, líder da resistência pacífica, morto em 1º de abril de 1927; o Beato Miguel Augustín Pro, sacerdote jesuíta assassinado em 23 de novembro de 1927; e São José Luis Sánchez del Río, um menino de apenas 14 anos, martirizado em 10 de fevereiro de 1928 e canonizado em 16 de outubro de 2016, pelo Papa Francisco.

A perseguição era tamanha que muitos missionários religiosos fugiram para a fronteira ou retornaram para suas pátrias. Por isso, a maioria dos mártires, além das famílias cristeras, eram sacerdotes do clero diocesano, que permaneceram em suas comunidades. 

Em 22 de novembro de 1992, São João Paulo II beatificou 22 desses sacerdotes diocesanos mártires, canonizados pelo mesmo Pontífice em 21 de maio de 2000. Na ocasião, o Santo Padre destacou que “sua entrega ao Senhor e à Igreja era tão firme que, ainda tendo a possibilidade de se ausentar de suas comunidades durante o conflito armado, decidiram, a exemplo do Bom Pastor, permanecer entre os seus para não privá-los da Eucaristia, da Palavra de Deus e do cuidado pastoral”.

Trégua 

A Guerra Cristera terminou oficialmente em 1929, quando foi assinada uma trégua entre as duas partes. Porém, isso não acabou com a perseguição. Anos depois, cerca de 2,5 mil padres ainda viviam escondidos e seis bispos estavam exilados. Dos 3 mil sacerdotes que havia no México em 1926, restavam somente 334 em 1934.

As leis anticlericais continuaram a fazer parte da Constituição Mexicana, sendo alteradas apenas em 1992, com o restabelecimento das relações diplomáticas entre o México e a Santa Sé.

Na ocasião da beatificação de 13 desses mártires mexicanos, em 2005, o Cardeal José Saraiva Martins, então Prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, afirmou: “Os mártires são testemunhas privilegiadas da realeza de Cristo. Eles tinham consciência clara de que o reino de amor de Cristo devia ser instaurado, mesmo à custa da própria vida. De igual modo, a fé dos mártires é uma fé provada, como testemunha o sangue que por ela derramaram”.

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