Por uma democracia que favoreça o bem comum

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja indica a perspectiva cristã para a vivência de um ambiente democrático, o que também envolve o respeito às opiniões divergentes e a busca permanente de diálogo

Arte: Sérgio Ricciutto Conte

Anualmente, a comemoração do Dia da Pátria, em 7 de setembro, é ocasião para reflexões e manifestações sobre as condições de vida da população brasileira e as bases da democracia no País. Não será diferente este ano, com as já anunciadas mobilizações lideradas por variados atores sociais, evocando o sentimento de orgulho nacional.

O amor à pátria é uma virtude que se relaciona ao Quarto Mandamento da Lei de Deus – “Honrar pai e mãe” – e a perspectiva cristã a este respeito é explicitada no Catecismo da Igreja Católica (CIC): “É dever dos cidadãos colaborar com os poderes civis para o bem da sociedade, num espírito de verdade, de justiça, de solidariedade e de liberdade. O amor e o serviço à pátria derivam do dever da gratidão e da ordem da caridade” (CIC, 2239).

Uma democracia sã e equilibrada é reconhecida “pela solidez, harmonia e bons resultados do contato entre os cidadãos e o governo do Estado”, conforme apontou o Papa Pio XII em uma radiomensagem de dezembro de 1944, o que não significa uniformidade nos pontos de vista sobre os rumos do País, pois, segundo o próprio Pontífice, “quando se exige ‘mais democracia e melhor democracia’, tal demanda não pode ter outro significado do que colocar os cidadãos cada vez mais em posição de ter sua própria opinião pessoal e de expressá-la e aplicá-la de uma forma que seja conveniente para o bem comum”.

Em uma videomensagem em julho deste ano, o Papa Francisco exortou os cristãos a construir canais de diálogo, superando polarizações. Na encíclica Fratelli tutti (FT), lançada em outubro de 2020, o Pontífice aponta que o diálogo social autêntico “pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo” (FT, 203).  

Aos cristãos que se propõem ao diálogo para que a democracia no Brasil seja cada vez melhor, um dos subsídios fundamentais é o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), que traz detalhadas considerações sobre democracia participativa; soberania popular; eleições; aspectos fundamentais ao sistema democrático, como o respeito à pessoa humana, acesso a informações e os limites das instituições; e situações que o colocam em risco, como o relativismo ético, favorecimento de grupos e a corrupção. Leia mais a seguir.

SAIBA MAIS SOBRE O COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

‘Toda democracia deve ser participativa’

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja aponta que a participação do cidadão na vida comunitária é “uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição, por parte do povo, de poderes e funções que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa [cf. encíclica Centesimus annus, 46]. Isso implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha” (CDSI, 190).

Há, porém, ‘formas participativas insuficientes ou incorretas’

O documento fala da preocupação da Igreja com “formas participativas insuficientes ou incorretas e à generalizada desafeição por tudo o que concerne à esfera da vida social e política: atente-se, por exemplo, para as tentativas dos cidadãos de ‘negociar’ com as instituições as condições mais vantajosas para si, como se estas últimas estivessem a serviço das necessidades egoísticas, e para a praxe de limitar-se à expressão da opção eleitoral, chegando também, em muitos casos, a abster-se dela” (CDSI, 191).

‘O povo transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege’

Na democracia, o povo, em sua totalidade, é o sujeito da autoridade política. Entretanto, “o povo, de modos diferentes, transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege livremente como seus representantes, mas conserva a faculdade de fazê-la valer no controle da atuação dos governantes e também na sua substituição, caso não cumpram de modo satisfatório as suas funções” (CDSI, 395).

Não favorecer grupos ou ideologias e respeitar as pessoas

O Compêndio faz menção à encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, para reafirmar que a “‘Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de substituí-los pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos por meio da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da subjetividade da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade’ [cf. CA, 46]” (CDSI, 406), e na qual se aceitam os valores que inspiram os procedimentos democráticos: “a dignidade da pessoa humana, o respeito dos direitos do homem, o fato de assumir o ‘bem comum’ como fim e critério regulador da vida política. Se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade” (CDSI, 407).

Democracia em risco diante do relativismo ético

Um dos maiores riscos para as democracias, de acordo com o documento, é o relativismo ético, “que induz a considerar inexistente um critério objetivo e universal para estabelecer o fundamento e a correta hierarquia dos valores: ‘Hoje, tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo cético constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado’ [cf. CA, 46]” (CDSI, 407).

Os limites das instituições, as eleições e o controle social

De acordo com o documento, o Magistério da Igreja reconhece o princípio da divisão de poderes em um Estado, sendo assim “‘preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite’ [cf. CA, 44]”. Por sua vez, “os organismos representativos devem estar submetidos a um efetivo controle por parte do corpo social. Este controle é possível antes de tudo por meio de eleições livres, que permitem a escolha assim como a substituição dos representantes. A obrigação, por parte dos eleitos, de prestar contas acerca da sua atuação, garantida pelo respeito dos prazos do mandato eleitoral, é elemento constitutivo da representação democrática” (CDSI, 407).

A corrupção deforma o sistema democrático

Fazendo menção a um trecho da encíclica Sollicitudo rei socialis, de São João Paulo II–“Entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves, porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social” (SRS, 44) –, o Compêndio ressalta que a corrupção “compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados; introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o consequente enfraquecimento das instituições. A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelares e favores dos governantes” (CDSI, 411).

A burocratização excessiva é prejudicial

A administração pública deve servir os cidadãos, uma vez que o Estado é gestor dos bens do povo em vista do bem comum (cf. Mensagem de São João Paulo II para o Dia Mundial da Paz de 1998]. É contrário a essa perspectiva, porém, “o excesso de burocratização, que se verifica quando ‘as instituições, ao se tornarem complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado’ [exortação Christifideles laici, 41]” (CDSI, 412).

O acesso à informação é indispensáve à democracia

O Compêndio também ressalta que a informação é um dos principais instrumentos da participação democrática. “Não é pensável participação alguma sem o conhecimento dos problemas da comunidade política, dos dados de fato e das várias propostas de solução dos problemas. É necessário assegurar um real pluralismo neste delicado âmbito da vida social, garantindo uma multiplicidade de formas e de instrumentos no campo da informação e da comunicação, facilitando também condições de igualdade na posse e no uso de tais instrumentos mediante leis apropriadas” (CDSI, 414).

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